segunda-feira, 11 de novembro de 2013

A Construção das Tecnologias Sociais

O Programa Bem Morar é uma tecnologia social que integra serviços de crédito habitacional, assistência técnica e produção e fornecimento de materiais e métodos de construção civil sustentável para famílias de baixa renda, com objetivo de facilitar o seu acesso à moradia digna e sustentável.

  • Mostramos que Herrera (2010) identificou que a TA teve pouco êxito em reduzir a disseminação da tecnologia ocidental nos países subdesenvolvidos, atribuindo isso a dois fatores: a relação do estilo de desenvolvimento com o tipo de tecnologia (entendendo que a TA seria adequada e funcional quando inserida em modelos de desenvolvimento com a centralidade nas necessidades das pessoas) e à metodologia que vinha sendo aplicada no desenvolvimento de tecnologias apropriadas (entendendo que a metodologia deveria dar conta de envolver os usuários na criação da tecnologia de forma que eles se apropriassem do processo e de sua tecnologia e se tornassem sujeitos na construção de novos modelos de desenvolvimento). 
Em nossa percepção, estes parecem ser pontos fundamentais e estão relacionados à maioria das reflexões sobre Tecnologia Social. Neste tópico pretendemos expor alguns elementos que contribuíram para construção teórica em torno da Tecnologia Social.
  • Iniciaremos com a reflexão sobre as críticas feitas ao movimento da TA, algumas podem ser relacionadas com as constatações de Herrera e algumas aparecem na forma de ataques com pouca contribuição, o importante é que elas de alguma forma contribuíram para a construção de uma proposta de Tecnologia Social mais completa. 
De acordo com Dagnino et al. (2010) a maioria das críticas à TA são consequência do entendimento de que a ciência é neutra e a tecnologia proveniente dela necessariamente trará benefícios, independentemente de classe social, alinhamento político e localização geográfica.
  • Nessa concepção, supõe-se que o conhecimento produzido pela ciência é puro e quando aplicado para resolver situações produz tecnologias. Tais tecnologias supostamente seguem o avanço da ciência e quanto mais sofisticadas (ou de ponta) mais beneficio trazem. 
Dessa forma essas críticas à TA se fundam sobre a acusação de que essas tecnologias seriam atrasadas e que pouco sentido teria aplicá-las na produção enquanto se poderia produzir mais e melhor com tecnologias de ponta. 
  • O movimento da TA é acusado de conservadorismo por alguns críticos de esquerda. As tecnologias propostas pelo movimento da TA são relativamente simples, com materiais pouco sofisticados e/ou baseadas em tecnologias ultrapassadas pela ótica da tecnologia convencional, possibilitando a sobrevivência de comunidades pobres sem lhes oferecer acesso aos benefícios do progresso (entendendo a tecnologia capitalista e seus produtos como esses benefícios). Portanto, sem que haja grandes investimentos e sem mudanças no modelo, acentuou as desigualdades. 
Para esses críticos, essas características da TA contribuiriam para manter as relações de poder injustas predominantes, já que sua utilização “amenizaria a marginalização social e atenuaria o desemprego estrutural socialmente explosivo” dando alguma sobrevida ao sistema de produção capitalista. Cabe ressaltar que embora o movimento da TA estivesse preocupado em oferecer soluções a problemas das populações excluídas dos benefícios da sociedade moderna, o movimento pouco questionou as estruturas de poder dominantes (NOVAES; DIAS, 2010). 
  • Essas críticas (tanto as que acusam o movimento de “atrasado” quanto as que o acusam de conservador) pouco contribuíram para o movimento da TA e se apresentam no sentido de desqualificar qualquer esforço em torno da TA. No entanto, no que se refere à revisitação da proposta de TA para constituir uma nova proposta, essas críticas contribuem para expor como estão estruturadas as reflexões (ou dogmas) em torno da relação entre tecnologia e sociedade.
Uma outra crítica, ligada à questão metodológica levantada por Herrera (2010), parte de uma característica do movimento da TA pela qual grande parte de seus pesquisadores estão nos países desenvolvidos e por uma questão ideológica ou até por um “certo sentimento de culpa” se dedicam a produzir tecnologias que julgam necessárias ou capazes de suprir alguma necessidade de comunidades nos países subdesenvolvidos. 
  • É comum que esses pesquisadores nem conheçam profundamente a realidade a que querem ajudar, mesmo assim se dedicam a desenvolver tecnologias que deveriam responder demandas consideradas importantes. Não é difícil adivinhar que dificilmente essas tecnologias são realmente utilizadas. 
Dessa forma, essa crítica parte do fato de muitos dos seus pesquisadores desenvolverem supostas soluções completamente descoladas dos problemas que deveriam resolver, ou ainda sem nenhum potencial de uso pelos pretendidos usuários, já que estes não participaram do processo de criação e assim não se apropriaram devidamente da solução. 
  • Essa situação surge do pressuposto de que o aumento do leque de opções tecnológicas já é suficiente para alterar a natureza dos processos produtivos. Essa ideia só se mantém devido à falta de percepção de que o desenvolvimento de uma solução tecnológica é apenas uma etapa (necessária) do processo mas não é suficiente para que os atores se beneficiem com o uso dessa solução e tampouco para gerar mudanças no estilo de desenvolvimento através do envolvimento e emancipação social dos atores envolvidos (NOVAES e DIAS, 2010). 
Assim, podemos atribuir essa distância entre as tecnologias ofertadas pelos pesquisadores da TA e o seu uso efetivo como uma aparente incompatibilidade entre oferta e a demanda do produto conhecimento. 
  • Nesse sentido, Novaes e Dias (2010) identificam que a principal contribuição da Economia da Inovação para as reflexões em torno da TS está na discussão de que há “pouco realismo e aplicabilidade do modelo de Oferta e Demanda para tratar questões relativas ao produto conhecimento”.
O interesse em TA diminuiu e, por décadas os esforços na construção de novos paradigmas tecnológicos foram mínimos. Novaes e Dias (2010) e Dagnino et al. (2010) identificam a ascensão do neoliberalismo na década de 1980 como o principal motivo para as discussões sobre TA terem sido deixadas de lado. 
  • Para os autores, a ascensão do neoliberalismo e toda sua ideologia, que exclui a ideia de construção de projetos (favorecendo a liberdade dos mercados) e que tem como um dos seus pilares a tecnologia capitalista, não deixou espaço para discussões em torno de um projeto de sociedade menos excludente que tinha como ponto necessário a desconstrução da tecnologia capitalista. 
Dessa forma, as discussões sobre TA tiveram grande força na década de 1970, quase desapareceram ao longo da década de 1980 e foram resgatadas na última década como subsídio para construção conceitual da Tecnologia Social. As discussões sobre tecnologias alternativas tomaram corpo e fortaleceram movimentos como as Redes de Economia Solidária (RESs) e as incubadoras de Cooperativas Papulares (ITCPs). 
  • Conforme Novaes e Dias (2010) e Dagnino et al. (2010), é possível destacar duas questões que contribuíram para a reemergência das discussões sobre tecnologias alternativas. Uma delas leva em conta o cenário político mundial no qual ocorreu a mundialização do capital, tal cenário favorece aos detentores de capital nos países centrais e penaliza os países periféricos onde há um projeto de integração subordinada e excludente que agrava as desigualdades causadas pelo estilo de desenvolvimento predatório. 
Nesse cenário, grupos, que questionam sua inviabilidade, já começam a refletir e militar na construção de um novo projeto de sociedade, refletindo sobre a necessidade de se construir um novo paradigma tecnológico que contribua com novas propostas de desenvolvimento (DAGNINO et al., 2010; NOVAES; DIAS, 2010).

A Construção das Tecnologias Sociais

  • É natural que se difundisse a preocupação com as bases tecnológicas de um processo que permita a recuperação da cidadania dos segmentos mais penalizados, a interrupção da trajetória de fragmentação social e de estrangulamento econômico interno do país e a construção de um estilo de desenvolvimento mais sustentável (DAGNINO et al., 2010, p. 124). 
A segunda questão sobre o ressurgimento das discussões sobre tecnologias alternativas é a emergência de desenvolvimentos teóricos que tratam de processos tecnológicos que tem como objetivos reverter a fragilização social causada pelo ambiente econômico e tecnológico propiciado pelo neoliberalismo. 
  • Novaes e Dias (2010) citam como exemplo a emergência de trabalhos sobre “arquitetura e movimentos sociais”, “agroecologia e movimentos sociais”, “autogestão e fábricas recuperadas”, “software livre e inclusão social”, “engenharia e autogestão”, entre outros (NOVAES; DIAS, 2010). 
Dessa forma, a Tecnologia Social se alimenta de diversas reflexões que já trabalham com a construção de tecnologias para inclusão social, encontrando um caminho promissor nesses processos. 
  • Uma abordagem teórica considerada, por Dagnino et al. (2010), relevante para as reflexões sobre a TS é a Teoria Crítica da Tecnologia. Tal abordagem fornece subsídios para a “adoção de uma agenda propositiva e concreta sobre como partidários da TS deveriam atuar afim de potencializar seu desenvolvimento e crescente adoção” (DAGNINO et al., 2010, p. 92). 
Feenberg (2010) descreve a Teoria Crítica da Tecnologia partindo da sua comparação com outras 3 visões sobre ciência, tecnologia e sociedade. O autor descreve cada visão de tecnologia partindo de seus entendimentos da tecnologia como “neutra ou carregada de valores” e “autônoma ou humanamente controlável”, considerando a teoria crítica como a concepção que reconhece a tecnologia como humanamente controlável e condicionada por valores. 
  • Ao diferenciar entre neutra e carregada de valores, o autor mostra que há concepções que acreditam que a tecnologia é construída Neutra e terá os seus benefícios e malefícios dados pelo uso que se faz dessa tecnologia, bem como nas visões em que a tecnologia é Carregada de Valores, acredita-se que a tecnologia é concebida para atender demandas de um determinado contexto, a alteração do contexto não altera as demandas que a tecnologia é adequada para solucionar, portanto ela carrega os valores de seu contexto. 
Ao diferenciar entre visões da tecnologia sendo Autônoma ou Humanamente Controlável, o autor distingue uma concepção autônoma que acredita que o processo de desenvolvimento tecnológico segue regras próprias, quase que naturais, que não permitem aos seres humanos decidir sobre os rumos da tecnologia; e uma concepção de que a tecnologia é Humanamente Controlável, ou seja, é possível escolher quais os rumos que mais atendem as necessidades tecnológicas da humanidade. 
  • Assim, o instrumentalismo “é a visão-padrão moderna, segundo a qual a tecnologia é simplesmente uma ferramenta ou instrumento com que a espécie humana satisfaz suas necessidades”. “Essa visão corresponde à fé liberal no progresso, uma característica preponderante da tendência que dominou o pensamento ocidental até bastante recentemente”. 
O determinismo tecnológico “traduz uma visão amplamente mantida nas ciências sociais desde Marx, segundo a qual a força motriz da história é o avanço tecnológico. Nessa visão a tecnologia não é controlada, pelo contrário, controla os seres humanos, moldando a “sociedade às exigências de eficiência e progresso”. 
  • A visão do substantivismo carrega um pessimismo que considera que a “autonomia da tecnologia é ameaçadora e malévola. A tecnologia uma vez liberta fica cada vez mais imperialista, tomando domínios sucessivos da vida social” (FEENBERG, 2010, p. 45,46,48). 
A teoria crítica da tecnologia sustenta que os seres humanos não precisam esperar um Deus para mudar a sua sociedade tecnológica em um lugar melhor para viver. A teoria crítica reconhece as consequências catastróficas do desenvolvimento tecnológico ressaltadas pelo substantivismo, mas ainda vê uma promessa de maior liberdade na tecnologia. 
  • O problema não está na tecnologia como tal, senão no nosso fracasso até agora em inventar instituições apropriadas para exercer o controle humano da tecnologia. Poderíamos adequar a tecnologia, todavia, submetendo-a a um processo mais democrático no design e no desenvolvimento (FEENBERG, 2010, p. 48).
Nesse sentido, a Tecnologia Social pode ser entendida como uma forma de operacionalização das possibilidades identificadas pela Teoria Crítica da Tecnologia. A TS se reconhece como uma forma de corrigir as distorções causadas pelo modelo que tem a TC em sua centralidade, através de processos que, ao desenvolver tecnologias com seus usuários, dê subsídios para a construção de uma nova sociedade cujos alicerces são as necessidades básicas dos seres humanos. 
  • Próximo a essa constatação, Rafael Dias (2009), identifica uma inadequação entre a Política Científica Tecnológica (PCT) no Brasil e os interesses da sociedade, em consequência do ator dominante no processo decisivo da PCT ser o próprio pesquisador. 
Essa situação leva a um processo em que a PCT “emula” a agenda científica e tecnológica dos países centrais por adotar seus pressupostos de que a introdução de inovações na indústria gera desenvolvimento por torná-la mais competitiva. Esse processo não é questionado pois a PCT está blindada da intervenção de outros atores que não o pesquisador científico. 
  • Nesse sentido, o autor considera que para aproximar a PCT das demandas sociais seria necessário aumentar a participação de outros atores que não o pesquisador científico no processo decisório da PCT. Além disso, o autor considera que a TS tem o potencial de aproximar a agenda da PCT das demandas sociais, entendendo o próprio desenvolvimento tecnológico como uma forma de identificar e suprir demandas sociais. 
Dagnino (2008) resgata a ideia de “racionalização democrática” de Feenberg para descrever a proposta de Adequação Sociotécnica (AST). A “racionalização democrática seria um processo que, conduzido por comunidades democráticas, libertaria a escolha do projeto tecnológico das coações hegemônicas” (FEENBERG apud DAGNINO, 2008). Desta forma, Dagnino et al. (2010) identificam a AST como a operacionalização da Tecnologia Social:
No contexto da preocupação com a TS, a AST teria por objetivo adequar a TC (e, inclusive, conceber alternativas), aplicando critérios suplementares aos técnico econômicos usuais a processos de produção e circulação de bens e serviços em circuitos não formais, situados em áreas rurais e urbanas (como as Redes de Economia Solidária), visando a otimizar suas implicações.
Entre os critérios que conformariam o novo código sociotécnico (alternativo ao código técnico-econômico convencional) a partir do qual a TC seria desconstruída e reprojetada dando origem à TS, podem-se destacar, além daqueles presentes no movimento da TA, a participação democrática no processo de trabalho e o atendimento a requisitos relativos ao meio ambiente (mediante, por exemplo, o aumento da vida útil das máquinas e equipamentos), à saúde dos trabalhadores e dos consumidores e à sua capacitação autogestionária (DAGNINO et al., 2010, p. 100,101).
Assim, a Tecnologia Social, para além de um tipo específico de tecnologia, se constitui pela elaboração de uma forma alternativa de produção e desenvolvimento, preocupa-se em fornecer subsídios para a construção de outro paradigma tecnológico, concentrando-se na coerência que o processo de desenvolvimento tecnológico deve apresentar para induzir transformações a partir da emancipação e envolvimento de atores sociais nos processos de elaboração de políticas e desenvolvimento tecnológico. No tópico a seguir traremos um pouco mais sobre o conceito de adequação sociotécnica. 

A demanda por habitação em todas as classes sociais favoreceu a inserção
de novas técnicas construtivas nas obras do Ceará.