quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Césio 137: O Maior Acidente Radiológico

Césio 137 - Goiânia Brasil O Maior acidente radiológico do mundo

  • Entre as avenidas Paranaíba e Tocantins, no centro da cidade de Goiânia, funcionava o Instituto Goiano de Radiologia (IGR) em um terreno emprestado pela Sociedade São Vicente de Paulo (SSVP) desde 1972. 
Como contrapartida do empréstimo do terreno, o Instituto deveria oferecer exames gratuitos aos pacientes da Santa Casa de Misericórdia de Goiânia sob a administração daquela Sociedade. 
  • A Santa Casa de Misericórdia alegou descumprimento do acordo por parte do IGR e, no ano 1984, decidiu vender o terreno para o Instituto de Previdência e Assistência do Estado de Goiás (Ipasgo) antes que fosse efetivada a ação de despejo dos antigos locatários, donos do IGR. 
Somente no ano seguinte, o Instituto de Radiologia se mudaria para um novo endereço deixando para trás os mobiliários e equipamentos antigos, entre os quais havia um aparelho radiológico contendo uma cápsula de césio-137.
  • Nos dois anos seguintes, caberia à justiça o papel de administrar o conflito entre o antigo, o novo proprietário do imóvel e o IGR. No mês de maio de 1987, o Ipasgo, novo dono do imóvel, iniciou a demolição do prédio. Todavia, uma liminar judicial o obrigou a interromper a destruição. 
O prédio em ruínas, invadido pelo mato, sem portas ou janelas, abrigava uma cápsula de césio-137. Naquela construção parcialmente demolida imperava um aspecto de abandono. Nos três anos em que permanecera abandonada (1985 a 1987), a cápsula não fora objeto de nenhum ato de fiscalização da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). O conflito de interesse econômico e político agenciado judicialmente ensejaria a irrupção de um drama.
  • No mês de setembro de 1987, o despojo de equipamentos abandonados nas ruínas do Instituto despertou a curiosidade e o interesse de dois moradores do Bairro Popular, adjacente ao Instituto. Os dois rapazes, que estavam temporariamente sem emprego, viram naquela parafernália de ferro e chumbo a possibilidade de conseguir algum rendimento monetário. 
Roberto e Wagner encontraram o aparelho radioterápico contendo a cápsula de césio-137 e levaram-no para a casa de Roberto na Rua 57. Os dois rapazes romperam o invólucro de chumbo e perfuraram a placa de lítio que isolava as partículas radioativas do contato com o ambiente. A peça de chumbo foi vendida para Devair, dono de um ferro-velho, localizado na Rua 26-A, no Setor Aeroporto. Embora não apresentasse valor comercial aparente, a cápsula indeterminada foi incluída na transação. 
  • Nas mãos de Devair, a cápsula revelou um brilho azul fascinante em uma noite de setembro. Entusiasmado com sua descoberta, Devair divulgou na vizinhança o espetáculo da luz azul e distribuiu entre parentes, amigos e vizinhos alguns fragmentos do pó desprendidos do interior da cápsula. O césio-137, liberado da cápsula, passaria a circular silenciosamente pela vizinhança do Bairro Popular, Setor Aeroporto e Setor Norte Ferroviário, bairros da região central de Goiânia.
A substância radioativa usada no tratamento de doenças havia escapado da cápsula protetora e se transformara em uma terrível fonte de contaminação. Nas noites de setembro de 1987, o césio-137 emanava uma deslumbrante luz azul que seduzia os moradores. Sob a forma de pedra ou pó, o césio-137 circulava de mão em mão como uma dádiva maravilhosa que, por vezes, era recebida como um signo de sorte e bem-aventurança.
  • Setembro é o mês em que as partículas radioativas se difundiram pelos ares de Goiânia e a cápsula incógnita encantara os moradores do Setor Aeroporto com seu brilho azul, apenas visto à noite. Somente em outubro de 1987, a contaminação foi constatada e o episódio do rompimento da cápsula foi assimilado como ponto inicial de uma tragédia divulgada como o "acidente radioativo com o césio-137". 
A sequência de acontecimentos seria assimilada como um grave acidente radiológico. Nesse intervalo, a movimentação das pessoas diretamente atingidas e a circulação de seus objetos contribuíram para a disseminação da radiação. Não apenas a cápsula (fonte principal) e seus fragmentos, mas também pessoas e objetos irradiados tomaram rumos insuspeitados. 
  • As partículas radioativas suspensas no ar foram transportadas pelos ventos e precipitaram sobre o solo, plantas e animais. As pessoas afetadas se tornaram fontes irradiadoras e contaminariam hospitais e ambulatórios aos quais recorreram em busca de tratamento para os sintomas da contaminação.
As pessoas, que entraram em contato com a luz azul, foram categorizadas como vítimas e submetidas a um violento processo de controle intensivo sobre seus corpos e fluidos corporais. A substância radioativa foi inscrita de maneira indelével em seus corpos, convertidos em fontes de radiação. Os lugares, os objetos e os animais que estiveram em contato com pessoas contaminadas também foram irradiados. 
  • O signo radiológico penetrou no sistema de prestações e contraprestações entre parentes e vizinhos por meio de fragmentos extraídos do interior da cápsula de césio-137, ou por meio da circulação de objetos e animais contaminados. 
No mês de outubro, iniciaram-se também os procedimentos de controle e descontaminação das áreas afetadas. Do azul que encantara a vizinhança nas noites de setembro haviam sobrado vítimas e ruínas. As primeiras vítimas foram incorporadas como personagens do drama radiológico.
  • No final daquele mês, a notícia da morte das primeiras vítimas elevou o drama a seu ponto culminante de exasperação. O episódio recrudesceu o medo na população goianiense revelando-lhe o caráter fatal da contaminação radiológica. Maria Gabriela e a criança Leide das Neves não suportaram a excessiva dose de radiação a que foram expostas e morreram no Hospital Naval Marcílio Dias, na cidade do Rio de Janeiro. 
Maria Gabriela havia abrigado a cápsula em sua sala de visitas durante os dias em que seu marido Devair exibia o espetáculo da luz azul à vizinhança. A menina Leide das Neves de seis anos havia recebido do pai, Ivo, irmão de Devair, algumas pedrinhas azuis de césio-137 para brincar. A criança foi contaminada ao comer ovo cozido com as mãos sujas do pó radioativo durante o jantar. E morreria com o diagnóstico de contaminação interna aguda.
  • Um luto oficial de três dias, decretado logo após o falecimento das duas vítimas, terminou na manhã do dia 26 de outubro de 1987. Iniciaram-se, então, os preparativos para o sepultamento seguindo às medidas de radioproteção recomendadas pelos técnicos da CNEN. 
A partir do dia do sepultamento das primeiras vítimas, procurei narrar um fragmento da história do evento radiológico do césio-137. Nesse ponto do drama, a luz azul irradiada pela cápsula de césio-137 que fascinara os moradores de alguns bairros de Goiânia esgotou-se e desapareceu completamente para dar lugar ao chumbo das urnas das primeiras vítimas fatais e dos tambores de lixo radioativo.
  • No início da manhã do dia 26, os caixões ainda aguardavam no Rio de Janeiro para embarcar no avião da Força Aérea Brasileira com destino a Goiânia. Alguns parentes de Leide das Neves e os vizinhos que haviam se contaminado com a radiação continuavam em Goiânia isolados no hospital do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) ou abrigados em barracas plásticas no Estádio Olímpico. 
Enquanto aguardavam a prometida transferência para alojamentos públicos improvisados nas unidades da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), suas casas eram invadidas e destruídas conforme designava o roteiro da operação de descontaminação, conhecida como "Operação Césio", empreendida pela CNEN. 
  • Outras doze vítimas em estado agudo de contaminação também haviam sido transferidas para o Hospital Naval Marcílio Dias onde eram submetidas a um tratamento extenuante à base de sucessivos banhos de descontaminação e à fórmula do Azul da Prússia ministrado como o antídoto para a contaminação com o césio-137.
O Azul da Prússia, substância do mesmo grupo dos cianetos tóxicos, seria o antídoto capaz de combater os efeitos da luz azul no organismo humano. Entre césio e cianetos havia uma conversão sutil de substâncias que permeava as fronteiras entre veneno e remédio. Por coincidência ou não, os ácidos e tintas usadas para identificar os rastros da contaminação, durante o trabalho de descontaminação dos técnicos da CNEN, também eram azuis. 
  • Naquele dia, as partículas invisíveis de césio-137 ainda espreitavam as casas da vizinhança. Tudo o que havia sido tocado por elas transformava-se, então, em ruínas e lixo radioativo durante os procedimentos de descontaminação. Para a grande operação técnica, reputada como "Operação Césio", uma nova encomenda de tambores de aço carbono e chumbo havia sido feita, além de contêineres e carretas com blindagem especial. Milhares de tambores chegavam diariamente a Goiânia para abrigar todo o lixo radioativo.
Erguia-se nas ruas uma barulhenta operação orquestrada por técnicos vestidos com macacões de proteção como astronautas em um mundo revirado e subvertido pela energia radioativa. Retroescavadeiras, empilhadeiras, brita, areia e cimento afinados em um concerto de destruição. 
  • Os contadores Geiger eram repetidas vezes desregulados pelos altos níveis de radiação e precisavam ser continuamente calibrados. O alarme do aparelho era desligado. Se permanecesse ligado, o barulho do contador não cessaria acusando a forte presença da radiação por toda a parte. Não havia medida tolerável e os limites do aparelho eram facilmente excedidos. 
Na Rua 55, outro aparelho usado para medir radiações, o cintilômetro, acusava 3 mil Cps (choques por segundo), 5 mil Cps na Rua 74 e 2 mil Cps ao aproximar-se do Mercado Popular. Na Rua 57, a 10 metros do cordão de isolamento, o cintilômetro havia excedido seu limite de 15 mil Cps. Nas mãos do geólogo Antônio Eulálio Filho, o aparelho detectou radiação no Coreto da Praça Cívica, na Praça do Bandeirante e na Avenida Paranaíba e Avenida Goiás, marcos da fundação da cidade de Goiânia. Da Avenida Paranaíba até o Estádio Olímpico o nível de radiação detectado foi se elevando até atingir 200 Cps.
  • No Estádio Olímpico, milhares de pessoas atormentadas pelas suspeitas de contaminação alongavam as filas para exames dosimétricos. Outras pessoas se encaminhavam ao Estádio a fim de solicitar atestados de descontaminação para fazer viagens para fora do Estado de Goiás. 
Em outros Estados, os goianienses eram barrados em hotéis, restaurantes e aeroportos, e veículos com placa de Goiânia eram depredados. Naqueles dias, tudo o que fosse originário do Estado de Goiás era tido como contaminado. Muitas pessoas buscavam esses atestados como uma garantia de seu acesso livre a outras cidades e como um modo de se protegerem contra a discriminação e hostilidade. 
  • No mesmo dia 26, o Consórcio Rodoviário Intermunicipal (Crisa) foi designado pela CNEN para liderar a Operação Césio. A construtora Andrade Gutierrez também integrou a equipe. Seus técnicos e operários foram prontamente conduzidos às áreas contaminadas. 
Em nome da urgência dos procedimentos de descontaminação, os trabalhadores eram submetidos ao risco de contaminação. Militares poderiam ser atingidos, abatidos pela radiação para "salvar" toda a Operação. Aqueles que tinham famílias constituídas e filhos eram preferencialmente escolhidos para a "frente da batalha" por, supostamente, assombrar-lhes menos o fantasma da esterilidade e o risco de gerar filhos depois de ter sido tocado pela radiação. 
  • No controle do acidente, alguns foram deliberadamente escolhidos para enfrentar o "inimigo" radioativo invisível e inodoro. Eram necessários muitos braços para transformar as ruas, as casas, os animais e os objetos contaminados em lixo. Para aquela operação, precisavam ser reduzidas as dimensões da matéria contaminada e qualquer valor ou estima que tivesse, e fazer tudo caber nas estreitas medidas dos contêineres de chumbo.
Os protagonistas da operação de descontaminação da cidade também eram aventados como possíveis culpados pelo acidente, em investigações da Polícia Federal e da Comissão Parlamentar de Inquéritos (CPI) do Senado Federal. Haviam sido intimados pela Polícia Federal os representantes da CNEN e do órgão do governo do Estado de Goiás, Instituto de Assistência dos Servidores Públicos do Estado de Goiás (Ipasgo), além dos donos do Instituto de Radiologia. 
  • O curso das investigações policiais apontava falhas na fiscalização da CNEN durante os dois anos em que a cápsula permanecera abandonada e responsabilizava os donos e o físico responsável pelo setor de radiologia do Instituto por terem abandonado a cápsula sem informar à CNEN e aos novos proprietários do terreno.
A Operação Césio era empreendida como uma operação de guerra que deixava em seu rastro ruínas e violência. A 20 quilômetros do perímetro urbano de Goiânia, técnicos e operários também trabalhavam na construção de um grande aterramento. O lixo radioativo era removido da Rua 57 para as imediações do bairro Vila Pedroso, em Abadia de Goiás, distrito de Goiânia localizado na porção sudoeste do município. 
  • No lugar designado para o depósito, os primeiros caminhões carregados com os tambores radioativos foram recebidos pelos moradores dos arredores com uma vigorosa artilharia de pedras e paus. As pessoas se armavam como podiam para enfrentar aquela determinação que as obrigava a ter o lixo radioativo como vizinho. Policiais militares e agentes da Defesa Civil foram acionados para controlar a revolta popular naquelas sobras de cerrado que os técnicos julgavam ser inabitadas. 
A sentença da criação do depósito cumprida pela força das escavadeiras e tratores mecânicos soava como uma condenação a ser arrastada por gerações de pessoas que morariam naquele espaço. Seriam necessários cerca de 300 anos para que aquele lixo perdesse completamente seu poder de contaminação ou irradiação.
  • A batalha em torno do lixo radioativo também era travada entre o prefeito, o governador e o presidente da República. Disputas acaloradas para decidir se o lixo ficaria ou não em Goiânia. Para a prefeitura e o governo do Estado, o lixo deveria sair o mais rapidamente possível de Goiânia e a Serra do Cachimbo,no Estado do Pará, parecia-lhes um destino razoável. Sem apoio da Presidência da República e sob os agravos dos protestos de outros Estados, o governador e o prefeito tiveram de aceitar a determinação segundo a qual o lixo radioativo não poderia ultrapassar as fronteiras de Goiás. 

Material radioativo sendo estocado na Rua 57 em Goiânia-GO.

O cemitério atômico:
  • Um "cemitério atômico" seria, então, armado sorrateiramente. A cada anoitecer recomeçava o trabalho de construção do depósito. A noite era mais propícia para transportar os contêineres de lixo e contornar a resistência e a insatisfação popular. 
Enquanto a vizinhança se distraía no sono, as pilhas infindáveis de tambores iam sendo erguidas como uma muralha com suas fortificações e cercados intransponíveis. Oito anos mais tarde, no ano 1995, seria criado um novo município para abrigar o lixo radioativo que carregaria em sua bandeira o trevo quinado amarelo, símbolo da radioatividade. O depósito de rejeitos instalar-se-ia definitivamente nas adjacências do pequeno povoado emancipado como município de Abadia de Goiás. 
  • Ainda era manhã do dia 26 de outubro, quando recomeçaram a desmontar o depósito de ferro-velho e a casa onde moravam Maria Gabriela e seu marido Devair. O ferro-velho era o lugar onde a cápsula de césio-137 revelou sua luz azul a Devair. Em uma noite de setembro, a cápsula cinza e sem valor lançara seu brilho sobre os olhos fascinados de Devair e passara a ser o centro das atenções na vizinhança do Setor Aeroporto.
A demolição do ferro-velho também decretava o fim da moradia provisória de meninos de rua e do amplo lote onde brincavam as crianças do bairro. Juntamente com as ferragens e parafernálias do ferro-velho, viravam ruínas também o quarto, a cozinha e a sala de visitas que a cápsula iluminara nas noites de setembro. 
  • Derrubaram também as paredes da oficina onde Devair recebera os irmãos Odesson e Ivo e seu vizinho Edson Fabiano para presenteá-los com pedrinhas ciosamente retiradas da cápsula misteriosa. 
Naqueles dias de setembro, em presença da cápsula desconhecida, Maria Gabriela havia tentado livrar-se dela. Escondeu-a no caminhão que transportaria a peça de chumbo que Devair havia vendido para um depósito de ferro-velho da vizinhança. Quando soube que sua cápsula estimada fora levada, Devair ordenou a um de seus funcionários que fosse resgatá-la prontamente.
  • Maria Gabriela pressentia um caráter maligno com relação à cápsula. Suas suspeitas se confirmavam ao observar os enjoos persistentes e a queda de cabelo de seu marido que haviam começado logo depois que a cápsula chegara à sua casa. Devair ridicularizava as suspeitas da mulher e continuava levando consigo a cápsula a tira colo na sua rotina de trabalho entre a casa e a oficina. 
Maria Gabriela buscou novas estratégias para tentar comprovar suas hipóteses com relação à cápsula. No dia 29 de setembro, em uma nova tentativa de se livrar da cápsula, Maria Gabriela levou-a até a sede da Vigilância Sanitária acompanhada por Geraldo Guilherme, um dos empregados do ferro-velho. 
  • Enquanto Geraldo Guilherme levava a cápsula pendida sobre as costas dentro de um saco de linho, Maria Gabriela ia ditando o itinerário até o ponto de ônibus. Os dois embarcaram no ônibus da linha circular 401 e acomodaram a cápsula naquele estreito espaço do ônibus lotado durante os poucos minutos do trajeto da Rua 26-A até a Rua 16-A.
Ao sinal de Maria Gabriela, os dois desembarcaram em frente à sede da Vigilância Sanitária. Geraldo Guilherme depositou a cápsula enrolada em um saco de linho na mesa da recepção enquanto Maria Gabriela tentava explicar suas suspeitas sobre as propriedades malignas da cápsula ao veterinário Paulo e não se esqueceu de contar que aquele objeto fora encontrado em um antigo instituto de radiologia. Mesmo sem acreditar completamente no relato de Maria Gabriela, o veterinário pensou ser mais prudente tomar distância da cápsula colocando-a em uma cadeira abandonada no pátio da Vigilância Sanitária. 
  • Vários dias se passaram até a diretoria da Vigilância Sanitária conseguir contatar um físico habilitado para a avaliação da cápsula. Nesse ínterim, aquele embrulho desconhecido despertava a curiosidade dos funcionários que, ao transitar pelo pátio, aproximavam-se e abriam-no para observar aquele material misterioso. O desconhecimento com relação à cápsula recobria a operação invisível da radiação com uma fina película cotidiana que estava prestes a ser rompida.
Por fim, coube ao físico Walter a incumbência de avaliar o material. Antes de atender aquela solicitação, o físico tomara emprestado um medidor Geiger da empresa Nuclebras e partira em direção ao prédio da Vigilância Sanitária. Antes mesmo de chegar à Rua 16-A, o físico fora surpreendido pelo disparo do alarme do aparelho acusando um nível de radiação absurdo. Não acreditou naquelas medidas e pensou, então, que o aparelho estivesse completamente desregulado. Retornou à empresa para substituir o aparelho medidor supostamente defeituoso. 
  • Para sondar os possíveis riscos daquele objeto, também foi acionado o Corpo de Bombeiros. Atendendo ao chamado do veterinário Paulo, os militares Miraldo, Adão e Agildo caminharam em direção ao pátio interno e se aproximaram do embrulho. Analisaram-no e não encontrariam nenhuma resposta conclusiva. Miraldo, o superior em patente, decidiu que o procedimento mais adequado para aplacar as suspeitas em torno da cápsula seria lançá-la no Rio Meia-Ponte. 
Quando os soldados se aproximaram da peça atendendo à ordem do sargento foram subitamente interrompidos pelo grito do físico com o resultado da alarmante avaliação sobre aquele objeto: tratava-se de uma cápsula radioativa.
  • As partículas radioativas invisíveis estavam em toda parte, mas apenas o físico e seu aparelho medidor conseguiam percebê-las. O físico contatou a CNEN para informar sobre o vazamento radioativo enquanto o veterinário procurava na sua gaveta o endereço deixado por Maria Gabriela. 
Precisavam refazer o trajeto da cápsula para descobrir a extensão da contaminação radioativa e iniciar as medidas de controle e isolamento de áreas e pessoas contaminadas enquanto chegavam os diretores e técnicos da CNEN. 
  • Antes de soar o toque da campainha, Maria Gabriela havia percebido pela janela a chegada do veterinário da Vigilância Sanitária acompanhado de outro rapaz. Alinhara o sofá e ajeitara a sala de visitas para recebê-los, queria que vissem o asseio e o zelo com que arrumava aquela casa. Quando abrira o portão, o veterinário recusou-se a entrar repelindo qualquer contato. Da calçada, o físico anunciou que a casa e o ferro-velho estavam altamente contaminados com uma substância radioativa e que ela e o marido deveriam abandonar o lote imediatamente.
Quase um mês depois desse episódio, no dia 26 de outubro, as casas da Rua 26-A já estavam completamente desabitadas. Os moradores haviam deixado o bairro assombrados pelos perigos que poderiam conter a palavra "radioatividade" ou impelidos pela força policial. 
  • A alguns passos do ferro-velho em demolição, as casas dos irmãos Ernesto Fabiano e Edson Fabiano também não resistiram à insistência das brocas, tratores, guindastes e desabaram. Em alguma noite encantada de setembro, Edson mostrara o pó azul para a família e Ernesto guardara algumas porções no bolso da calça. Dalva, esposa de Ernesto, temendo o mistério das partículas luminosas, lançara-as no vaso sanitário.
Em frente ao ferro-velho, um prédio estremecia com o impacto vigoroso das demolições. Os moradores do prédio Célia Maria vigiavam estupefatos cada estilhaço, cada vestígio e pó que precipitassem em sua janela. O edifício também poderia estar contaminado. Naquelas noites inacreditáveis de setembro, as partículas radioativas libertadas pela luz azul teriam alcançado o prédio na carona de alguma brisa. Um grupo de técnicos com seus macacões amarelos começou a marchar resolutamente em direção ao prédio. 
  • O silêncio dos moradores tentava calar aquela suspeita. Os técnicos ligaram o contador Geiger que com seu alarme decretou seu temível diagnóstico. A sirene do contador soou implacável contra aqueles olhos e ouvidos que das janelas testemunhavam a cena incrédulos. Um novo projeto de destruição poderia ser assinalado no roteiro da Operação. O terceiro andar do prédio apresentava níveis altíssimos de contaminação.
Muitos moradores se refugiavam nas casas de parentes. Mas alguns ainda permaneciam nos seus apartamentos tentando resistir ao pânico que se generalizava na vizinhança. O prédio cercado pela faixa amarela zebrada como um cercado radioativo ameaçava desabar com aquela contenda. 
  • Em outra rua contaminada, chamada Rua 6, no setor Norte-Ferroviário, havia uma intensa agitação de técnicos no lote de Ivo, um dos irmãos de Devair que também recebera a dádiva das pedras azuis. O trabalho de demolição precisava ser iniciado com urgência e os técnicos se adiantavam na avaliação. 
A casa estava absolutamente trivial: a mesa do café ainda estava posta com cinco xícaras, cinco lugares, um para Ivo, para sua esposa Lourdes, para os três filhos Lucélia, Lucimar e Leide. Mas os farejadores Geiger percebiam uma mesa extremamente contaminada, sobretudo, no lugar reservado à filha caçula. Ali, Leide teria tomado seu jantar com as mãos contaminadas depois de brincar com as luzinhas radioativas que seu pai havia trazido em uma noite de setembro. 
  • O cintilômetro havia disparado em um ruído estridente ao ser aproximado do corpo da menina, na primeira visita do físico Walter nos últimos dias de setembro e da ilusão das pedras brilhantes. A partir desses aparelhos, o césio tomava forma e realidade, e poderia, então, ser detectado.
Os técnicos observavam com assombro ininteligível o berço da menina que ainda ardia sobre algumas centelhas radioativas e precisava de um tratamento técnico especial para que a radiação ali concentrada em altos níveis não contaminasse ainda mais as outras partes da casa. As pedras radioativas conteriam um poder de antimidas transformando tudo em lixo e ruínas. 
  • Todos queriam ver a casa da menina Leide das Neves e os jornalistas se antecipavam na cobertura da operação de demolição. Algo precisava ser salvo daquele conjunto condenado a virar pó e entulho radioativo. Alguma lembrança de Leide sobreviveria aos escombros? Sob os apelos comovidos da mãe da menina, Dona Lourdes, corroborados pelo jornalista Weber Borges, os técnicos salvaram uma foto de Leide retirada do álbum da família "banhado de césio". Essa foto contaminada, mais tarde, seria reproduzida como o símbolo do acidente e das lutas das vítimas por direitos.
A Rua 57, no Bairro Popular, estava gravemente contaminada. Era para lá que a maioria dos técnicos e operários e os jornalistas se dirigiam. As casas da vizinhança estavam sendo destelhada. As partículas tinham sido erguidas pelo vento e precipitado sobre os telhados. 
  • No lote 68 naquela mesma rua, ainda estava de pé a vigorosa mangueira que deu sombra para os dois rapazes enquanto tentavam abrir a cápsula. Naquele dia 13 de setembro, os dois rapazes acreditavam ser seu dia de sorte tendo nas mãos duzentos quilos de chumbo para vender. Recostado no muro ao lado estava o carrinho de mão sob o qual Wagner e Roberto haviam transportado uma parte da peça de radioterapia que descobriram nas ruínas do Instituto Goiano de Radiologia. 
Naquele estreito canteiro, o césio-137 seria libertado pela primeira vez e começaria a cumprir seu itinerário insuspeitado. Ganharia os quintais da vizinhança, a rua e as calçadas e penetraria o solo em quase meio metro, segundo o diagnóstico dos técnicos que avaliavam a área.
  • Muitos moradores das ruas vizinhas à Rua 57 também haviam deixado suas casas por determinação da equipe da CNEN ou por não suportar o medo e as suspeitas ainda não decisivamente diagnosticadas. Vários militares cercavam o cordão de isolamento para controlar a circulação de pessoas e vigiar ocasionais furtos de objetos contaminados. Do outro lado da faixa amarela zebrada, a imprensa acompanhava o trabalho de demolição e relatava o desespero da vizinhança. 
O calor sufocante fazia duvidar da presença de nuvens que armavam uma chuva para aquela tarde. O azul do céu ia sendo sufocado pelas nuvens-chumbo. Sob aquele cenário de destruição, começava a cair aquela chuva mansa do mês de outubro que se estenderia até as primeiras horas da tarde. Embalados pela fina corrente de água que se formava com os pingos da chuva, os vestígios invisíveis do sal de cloreto de césio escorreriam por novas ruas.
  • No Cemitério Parque, onde seriam enterradas as vítimas, os técnicos faziam as últimas avaliações de segurança nas covas. Testavam a espessura da concretagem e instalavam os cordões de isolamentos. Após o anúncio sobre o pouso do avião da Força Aérea Brasileira (FAB) no aeroporto Santa Genoveva, trazendo do Rio de Janeiro os caixões de Maria Gabriela e Leide das Neves, a Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros iniciaram a intrincada tarefa de transportar em segurança os pesados caixões de chumbo até o cemitério. 
Uma equipe do corpo de bombeiros escoltava os caixões em carros blindados, enquanto uma multidão enfurecida se aglomerava na porta do cemitério para impedir que o sepultamento se realizasse. A vizinhança do setor Urias Magalhães onde se localizava o Cemitério Parque temia que a energia radioativa do césio-137 se instalasse tão próximo aos seus quintais. 
  • Presidentes da associação de moradores e um vereador inflamavam a revolta. O cordão de isolamento era cerceado por um agitado e intimidador cordão humano. Os jornalistas se avolumam no meio daquela tensa agitação popular. Pelo rádio, nas viaturas, policiais pediam reforço ao centro de operações da Polícia Militar.
Quando o caminhão blindado assomou na rua do cemitério, um motim ruidoso começou o ataque lançando palavras de rechaço e protesto que evoluíram para insultos. O caminhão ultrapassou o cordão de isolamento, venceu a resistência da multidão e seguiu em direção às duas covas. Pedras, torrões de barro, nacos de paralelepípedo, pedaços de cruzes foram atirados com fúria contra todo o aparato de veículos blindados e guindastes. 
  • Sob uma chuva de pedregulhos e estilhaços, os técnicos da CNEN iniciavam a complicada operação de retirada dos caixões de chumbo que pesavam toneladas. Os poucos parentes das vítimas se escondiam atônitos na confusão para não se tornarem novos alvos da ira popular. A artilharia de pedras não parou nem mesmo quando os caixões desceram às sepulturas com a ajuda de guindastes. 
Os ruídos pavorosos daquela revolta tornaram inaudíveis as palavras do padre que tentava coordenar aquela tensa cerimônia de sepultamento. Ao invés do descanso do barro, da terra, os mortos se refugiavam no abrigo do chumbo e do concreto. O retorno cristão ao pó não seria possível. 

Versão governamental:
  • Em setembro de 1987 aconteceu o acidente com o Césio-137 (137Cs) em Goiânia, capital do Estado de Goiás, Brasil. O manuseio indevido de um aparelho de radioterapia abandonado onde funcionava o Instituto Goiano de Radioterapia,gerou um acidente que envolveu direta e indiretamente centenas de pessoas. 
  • A fonte, com radioatividade de 50.9 TBq (1375 Ci) continha cloreto de césio, composto químico de alta solubilidade. O 137Cs, isótopo radioativo artificial do Césio tem comportamento, no ambiente, semelhante ao do potássio e outros metais alcalinos, podendo ser concentrado em animais e plantas. Sua meia vida física é de 33 anos.
  • Com a violação do equipamento, foram espalhados no meio ambiente vários fragmentos de 137Cs, na forma de pó azul brilhante, provocando a contaminação de diversos locais, especificamente naqueles onde houve manipulação do material e para onde foram levadas as várias partes do aparelho de radioterapia. Por conter chumbo, material de valor financeiro, a fonte foi vendida para um depósito de ferro-velho, cujo dono a repassou a outros dois depósitos, além de distribuir os fragmentos do material radioativo a parentes e amigos que por sua vez os levaram para suas casas.
  • As pessoas que tiveram contato com o material radioativo – contato direto na pele (contaminação externa), inalação,ingestão, absorção por penetração através de lesões da pele (contaminação interna) e irradiação -apresentaram, desde os primeiros dias, náuseas, vômitos, diarréia, tonturas e lesões do tipo queimadura na pele. 
  • Algumas delas buscaram assistência médica em hospitais locais até que a esposa do dono do depósito de ferro-velho, suspeitando que aquele material tivesse relação com o mal-estar que se abateu sobre sua família, levou a peça para a Divisão de Vigilância Sanitária da Secretaria Estadual de Saúde, onde finalmente o material foi identificado como radioativo. 
  • Devido às características do acidente de Goiânia, as vias potenciais de exposição da população à radiação foram: inalação de material ressuspenso, ingestão de frutas, verduras e animais domésticos e irradiação externa devido ao material depositado no ambiente.
  • A fonte radioativa foi removida e manipulada indevidamente no dia 13 de setembro, porém o acidente radioativo só foi identificado como tal no dia 29 do mesmo mês, quando foi feita a comunicação à Comissão Nacional de Energia Nuclear –CNEN, que notificou a Agência Internacional de Energia Atômica –AIEA. Foi acionado um plano de emergência do qual participaram CNEN, Furnas Centrais Elétricas S/A –FURNAS, Empresas Nucleares Brasileiras S/A -NUCLEBRÁS, DEFESA CIVIL, ala de emergência nuclear do Hospital Naval Marcílio Dias –HNMD, Secretaria Estadual de Saúde de Goiás – SES/GO, Hospital Geral de Goiânia –HGG, além de outras instituições locais, nacionais e internacionais que se incorporaram ou auxiliaram a “Operação Césio-137”.
  • As primeiras providências foram identificar, monitorar, descontaminar e tratar a população envolvida; as áreas consideradas como focos principais de contaminação foram isoladas e iniciou-se a triagem de pessoas no Estádio Olímpico. 
  • A descontaminação dos focos principais foi feita removendo-se grandes quantidades de solo e de construções que foram demolidas. Ao mesmo tempo era realizada a monitoração para quantificar a dispersão do 137Cs no ambiente, além de análise de solo, vegetais, água e ar. Foram identificados e isolados sete focos principais, onde houve a contaminação de pessoas e do ambiente e onde havia altas taxas de exposição.
  • No total, foram monitoradas 112.800 pessoas, das quais 249 apresentaram significativa contaminação interna e/ou externa, sendo que em 120 delas a contaminação era apenas em roupas e calçados, sendo as mesmas liberadas após a descontaminação. Os 129 que constituíam o grupo com contaminação interna e/ou externa passaram a receber acompanhamento médico regular. 
  • Destes, 79 com contaminação externa receberam tratamento ambulatorial; dos outros 50 radio acidentados e com contaminação interna, 30 foram assistidos em albergues, em semi-isolamento, e 20 foram encaminhados ao Hospital Geral de Goiânia; destes últimos, 14 em estado grave foram transferidos para o Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro, onde quatro deles foram a óbito, oito desenvolveram a Síndrome Aguda da
  • Radiação - SAR -, 14 apresentaram falência da medula óssea e 01 sofreu amputação do antebraço. No total, 28 pessoas desenvolveram em maior ou menor intensidade, a Síndrome Cutânea da Radiação (as lesões cutâneas também eram ditas “radiodermites”). Os casos de óbito ocorreram cerca de 04 a 05 semanas após a exposição ao material radioativo, devido a complicações esperadas da SAR - hemorragia (02 pacientes) e infecção generalizada (02 pacientes).
  • O acidente de Goiânia gerou 3500m3 de lixo radioativo, que foi acondicionado em containeres concretados. O repositório definitivo deste material localiza-se na cidade de Abadia de Goiás, a 23 km de Goiânia, onde a CNEN instalou o Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro-Oeste, que executa a monitoração dos rejeitos radioativos e controle ambiental.
  • Para executar o monitoramento sobre os efeitos da exposição à radiação ionizante nas pessoas que foram vítimas deste acidente, o governo do Estado de Goiás criou, em fevereiro de 1988, a Fundação Leide das Neves Ferreira, posteriormente transformada em Superintendência Leide das Neves Ferreira - SULEIDE. Foram definidos grupos de pacientes, de acordo com normas internacionais, que consideram como critérios de classificação a gravidade das lesões cutâneas e a intensidade da contaminação interna e externa, e que determinou a metodologia dos protocolos de acompanhamento médico.
  • Os cálculos de dose das pessoas foram feitos com base nos resultados dos exames de dosimetria citogenética, para avaliação da exposição externa; e de análise de excretas e contador de corpo inteiro para avaliação da contaminação interna. Pela técnica de dosimetria citogenética estima-se a dose recebida através de aberrações cromossomiais causadas pela radiação. 
  • A dose estimada é proporcional ao número de aberrações existentes. A técnica de análise de excretas é chamada de monitoração in vitro e a de contador de corpo inteiro – detectores de radiação são colocados próximos ao corpo e inferem a quantidade de material radioativo incorporado e subsequentemente a dose – monitoração in vivo.
Das várias lições aprendidas neste acidente, podemos nos referir àquela que trata da nossa responsabilidade em conhecer as conseqüências de se lidar com ciência e tecnologia, e ampliarmos os cuidados que priorizam a ética e o respeito à vida. 

A Câmara dos Deputados colocou em análise um projeto de lei que torna 
obrigatório o rastreamento no transporte de materiais nucleares.