segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

A siderurgia e a história Ambiental

Real fábrica de ferro de S. João do Ipanema 

  • O presente trabalho busca analisar, sob o ponto de vista da História Ambiental, os acontecimentos que envolveram as jazidas de ferro e as matas do Morro de Araçoiaba no período que se estende do início do século XIX até os anos 1820.
Com a vinda da família real para o Brasil em 1808, implantou-se a indústria do ferro em terras paulistas, na região de Sorocaba, SP. Aproveitando-se dos recursos naturais, o minério de ferro (magnetita) e as reservas florestais nas encostas do Morro de Araçoiaba, foi construída uma siderúrgica.
  • Buscando identificar o objeto de estudo foi feito um levantamento para saber quais são as idéias comuns que moradores com nível universitário de Sorocaba (professores e funcionários da área de educação) possuem sobre a história da Real Fábrica de Ferro e delimitar o problema através de perguntas que deveriam ser respondidas por esta pesquisa.
Doze pessoas foram entrevistadas em distintos encontros e os diálogos foram gravados. De modo geral as entrevistas reproduziram informações amplamente divulgadas pela mídia. Nas respostas ficou claro a cristalização de Ipanema vinculada a uma Sorocaba progressista. É associado à Fábrica de Ferro o surto industrial da cidade do final do século XIX, fomentador do mito da “Manchester” paulista. Este vínculo com o progresso seria decorrência “natural” do movimento bandeirante, e do tropeirismo.
  • As entrevistas também abordaram assuntos ambientais e uso de recursos naturais. Os entrevistados demonstraram querer conhecer os impactos ambientais produzidos pela instalação da fábrica. Assim, quando se associam os recursos naturais de Ipanema no século XIX e as atuais preocupações ambientais, o interesse sobre a História Ambiental da Fábrica de Ferro aumenta. Em nossa pesquisa ficaram patentes os pontos de contato da História Ambiental com as características físicas e de ocupação do Morro de Araçoiaba no período proposto por esse trabalho. No início do século XIX o Morro de Araçoiaba será palco da força predatória colonial com suas matas transformadas em carvão, o minério de ferro arrancado e os rios represados e desviados para movimentar maquinários.
Nesse contexto se inserem as relações conflitantes entre as autoridades lusas e os moradores do Morro de Araçoiaba: pequenos roceiros proibidos de cortar os arvoredos de uso doméstico; produzir o carvão comercializado na região, bem como preparar os roçados.
  • A questão central destes conflitos era a posse e o uso tradicional das matas que cobriam o Araçoiaba e a terra de seu entorno, cultivada pelos agricultores. Estes foram afetados pelas providências que antecederam a criação da Real Fábrica de Ferro de Ipanema, assim como no período de construção e funcionamento dos fornos siderúrgicos.
Ao tentar explicar esses conflitos, recorremos à instalação da fábrica, a partir de 1811, e a grande demanda de madeira para produzir o combustível, o carvão. Em virtude disso, demos especial atenção às técnicas siderúrgicas empregadas na época, bem como à riqueza oferecida pelas condições naturais do Morro de Araçoiaba (fauna, flora e minérios).
  • Isso conduziu a perguntar o que aconteceu com as matas que cobriam o Morro no século XIX, por que foram derrubadas e queimadas. Os entrevistados revelaram desconhecimento sobre as quantidades de carvão demandadas pelos fornos empregados no começo do século XIX.
A preocupação ambiental manifestada amplia o questionamento sobre que espécies animais existiam e habitavam o morro, assim como os pássaros, e que foram, muitas delas, extintas. Tentamos relacionar essas mudanças à perda da cobertura vegetal composta de variadas espécies nobres e também à história dos eventos que formaram o Morro.
  • A singularidade do Morro de Araçoiaba na paisagem delimita uma área com características distintas cuja formação geológica foi determinante para usos futuros. Ecies. Itens que somados à água em abundância, r cos que formaram a magnetita no Morro de Araçoiaba, proporcionaram solos ricos, que usados para agricultura atraíram inúmeras famílias para a região. Antes da ocupação agrícola, a terra fértil fez surgir uma imensa área natural, rica em espécies florísticas e fauna muitas vezes única. A mineração do ferro e a construção da usina consumiram principalmente os recursos florestais de ampla região ao redor do Morro e afetaram a vida de centenas de famílias que ali sobreviviam.
A importância da Real Fábrica de Ferro de Ipanema pode ser medida ao considerarmos os inúmeros trabalhos realizados sobre a Fábrica ou sobre a região em que se instalou. Sendo o historiador essencialmente um selecionador, a história de Ipanema pode ser contada de diversas maneiras, produzindo material vasto e diversificado.
  • Em passagem conhecida, presente no clássico de Marc Bloch, Apologia da história, ou o ofício do historiador, Bloch, acompanhado do também historiador Henri Pirenne, chegam a Estocolmo. Pirenne convida Bloch para visitar a nova sede da prefeitura da cidade; ao convite segue a explicação para tal escolha: “Se eu (Henri) fosse um antiquário, só teria olhos para as coisas velhas. Mas sou um historiador. É por isso que amo a vida.” Ao refletir sobre essa passagem, Bloch conclui que o historiador para ele, é aquele que pensa a história como “[…] apreensão do que é vivo [...]” e que deve exercitar seu olhar para “[...] um contato perpétuo com o hoje.” (BLOCH, 2001, p.65-66)
Hoje, e para isso basta ligar-se em algum veículo de mídia, o meio-ambiente é um assunto “quente”. Duarte (2005, p.11) faz um apanhado da importância que adquiriu nos últimos tempos os problemas ambientais, chamando atenção para o espaço cada vez maior que o meio ambiente vem ganhando na mídia e, conseqüentemente no dia-a-dia das pessoas: “[...] parece que o nosso mundo tornou-se obcecado pela natureza e sua preservação.” Esse interesse é realçado pela crescente importância econômica da biodiversidade, e também “[...] pelas ameaças reais de extinção de muitas formas de vida, inúmeras delas ainda desconhecidas e pouco estudadas [...].” (MARTINEZ, 2006, p.14)
  • A contradição é que essa mesma sociedade que parece ter eleito a natureza como uma de suas maiores preocupações “[...] é a mesma na qual o consumo de bens e produtos alcançou um nível nunca antes conhecido por nenhuma outra sociedade ao longo da história do homem.” (DUARTE, 2005, p.11-14) Na prática preocupamo-nos com as questões ambientais mas continuamos a consumir em excesso e de forma pouco consciente.
Neste contexto a História Ambiental busca refletir sobre as relações da humanidade com o meio ambiente em diferentes épocas e sociedades. Ao debruçar-se sobre estas relações pretende recriar e entender as leis que regulam os usos de um produto natural; as formas como é extraído e beneficiado e as representações e simbologias que adquire na vida humana. A História Ambiental entende a natureza como integrante do processo social, espaço das relações humanas e destas com o meio ambiente. A natureza em sua dimensão concreta, material, valorizada quando efetivamente presente no dia a dia da humanidade. (MARTINEZ, 2006, p.19-21)

Unidade de conservação: Floresta nacional de Ipanema Sorocaba

Por uma nova escala do tempo histórico: 
A contribuição das ciências naturais.
  • O tempo é o fio com o qual o historiador tece seus conceitos; uma ferramenta básica de seu ofício. O tempo histórico, aceito como pressuposto, pelo menos no ocidente cristão, é o bíblico, que se iniciaria com a criação da terra e não contaria mais de seis mil e poucos anos. Drummond (1991) associa às ciências naturais, em particular à história natural do século XIX, a exigência de um tempo muito mais longo para explicar processos que ‘apenas' alguns milhares de anos não bastariam:
“Charles Lyell, Alfred Russel Wallace e Charles Darwin (entre vários outros), estudando as paisagens e as formas antigas e atuais de vida, inferiram processos (formação de rochas, gênese das montanhas, erosão, elevação dos níveis dos mares, eras glaciais, formação e extinção de espécies, etc.) que tornavam insuficiente o teto de seis mil anos […]” (DRUMMOND, 1991, p.178)
  • Apesar dos confrontos com o pensamento mítico dominante uma nova escala do tempo prosperou e avançou. Esse tempo é agora chamado de 'tempo geológico' e “[...] tem evidentes implicações para pensar sobre a aventura humana, mesmo que seja apenas para torná-la cronologicamente insignificante”. (DRUMMOND, 1991, p.179) A aceitação de uma outra escala temporal demandou mudanças nas perspectivas das ciências sociais. Afinal, o tempo histórico tradicional de poucos milênios, registrado em documentos, parecia explicar a história humana. Segundo Drummond (1991, P.179), a razão para tal crença é que as ciências sociais,
“[…] adotaram um 'paradigma da imunidade humana'. Nele, cada sociedade e a cultura humana em geral são inteligíveis apenas em si mesmas, [...] evitando cuidadosamente sugerir que a cultura fosse de alguma forma limitada ou condicionada por fatores naturais.”
  • Dotada de novas possibilidades metodológicas a História Ambiental irá estabelecer contato com outros saberes. Desse diálogo surgirão problemas e objetos para a análise histórica, ampliando e corroborando a ampla experiência da História com a interdisciplinaridade. Interdisciplinaridade e História Ambiental
A mudança da percepção do papel da natureza e suas interações com o mundo cultural - diálogo entre história social e história natural – possibilitou a sistematização de algumas características metodológicas que norteiam o fazer de um trabalho de História Ambiental. Mas antes de delimitarmos os espaços de atuação do historiador ambiental convém acentuar o caráter notadamente interdisciplinar dessa abordagem.
  • O historiador ambiental na concepção de Worster (1991, p.202-203) precisa aprender a falar novas línguas e “[...] sem dúvida a mais estranha dessas línguas é a dos cientistas naturais.” Conceitos geológicos, que alargam o tempo histórico ou interpretam camadas da terra; gráficos de climatologia com dados oscilantes de chuvas e temperaturas; a química, com registros dos ciclos de carbono e alteração dos sais dos solos, são algumas das novas línguas que devem ser apreendidas por um historiador ambiental.
Esses conhecimentos em diálogo com a história podem abrir frentes originais de trabalhos: o uso das águas dos rios para movimentar turbinas; análises da poluição em áreas urbanas e como isso afeta a vida das pessoas; estudos sobre desertificações ocasionadas pelo desmatamento; os impactos da tecnologia sobre o meio ambiente. E próximo do tema deste trabalho, as atividades mineradoras, em uma análise interdisciplinar que inclui a história ambiental e a História da Técnica e da Ciência. (DUARTE, 2005, p.96)Segundo Drummond (1997, p.16-19) a metodologia da História Ambiental pode ser resumida em cinco características principais: 
  1. Ter como objeto de estudo uma região geográfica com algum grau de homogeneidade natural. Por esse viés metodológico a história ambiental aproxima-se da história regional; 
  2. Interdisciplinaridade: o diálogo com as ciências naturais que permite um entendimento das variáveis físicas e naturais da região estudada; 
  3. As interações do uso dos recursos naturais com os diferentes modos de vida e desenvolvimento civilizatório dos grupos humanos que habitam ou habitaram uma região; 
  4. Uso das fontes tradicionais da história econômica e social, como documentos governamentais e privados que demonstrem o valor e quais os recursos naturais usados em uma sociedade; 
  5. Trabalho de campo, onde se observam aspectos da vida natural (flora, fauna); os impactos humanos em diferentes épocas de ocupação; formações geológicas que levem ao entendimento do passado local, etc.
As características metodológicas da História Ambiental relacionam-se com as Geociências e as contribuições destas para o entendimento da natureza singular do Araçoiaba, fornecendo dados sobre a formação do morro; sua constituição mineral, hidrológica, faunística e botânica que atraiu grupos humanos em vários momentos.
  • Também essencial foi o diálogo com a História das Ciências e das Técnicas. No século XIX as visitas de naturalistas brasileiros com práticas e métodos científicos inseriram Ipanema no movimento ilustrado luso de vistoriar as potencialidades econômicas coloniais. Por sua vez, a construção e o funcionamento dos fornos trouxeram maquinário europeu, técnicas siderúrgicas e pessoal especializado.
Fundição Ipanema:
  • A Real Fábrica de Ferro São João do Ipanema, ou Fundição Ipanema, foi uma siderúrgica que existiu na região de Sorocaba, no atual município de Iperó, interior do estado de São Paulo, no Brasil.
História:
Antecedentes
  • Este importante empreendimento industrial foi o resultado de um longo planejamento da Coroa Portuguesa. Foi precedido pelas experiências de fabricação de ferro no morro de Araçoiaba, que começaram ainda no século XVI, com Afonso Sardinha (pai e filho). Ali, no que se chamava vale das Furnas (atual Ribeirão do Ferro), fizeram instalar um forno e duas forjas para fabricação de ferro pelo método direto, reconhecidos como a primeira tentativa de fabricação de ferro em solo americano.
A partir da reforma da Universidade de Coimbra, o professor de Química Domingos Vandelli incentivou muitos de seus alunos a estudar mineralogia e metalurgia. A Coroa Portuguesa enviou vários de seus ex-alunos para viagens de conhecimento na Europa. José Álvares Maciel esteve por ano e meio em Birmingham, Inglaterra, e José Bonifácio de Andrada e Silva e Manuel Ferreira da Camara percorreram França, Alemanha, Itália e Suécia por 8 anos. Ao voltar da viagem, Bonifácio foi encarregado de restabelecer a Fábrica de ferro de Foz d'Alge, em Portugal, para onde contratou os metalurgistas alemães Frederico Luiz Varnhagen e Wilhelm Ludwig von Eschwege. 
  • O futuro Intendente dos Diamantes Manuel Ferreira da Camara voltou para o Brasil com o projeto de implantar uma Fábrica de Ferro em Minas Gerais . Com a vinda da família real para o Brasil, os dois alemães foram convocados para contribuir na implantação de outros empreedimentos siderúrgicos no Brasil . Em janeiro de 1818 os cientistas naturais alemães Johann Baptiste von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius visitaram a Fundição Ipanema, como descrito no livro Viagem pelo Brasil.
A Real Fábrica de Ferro São João do Ipanema:
  • D. Rodrigo de Souza Coutinho, ministro de D. João VI, encarregou Varnhagen e Martim Francisco de Andrada e Silva de projetar uma Fábrica de Ferro moderna que aproveitasse o minério de Araçoiaba. O projeto foi concluído em julho de 1810, orçado em 60 contos de réis. A proposta enfatizava a necessidade de trazer técnicos europeus experientes na técnica siderúrgica.
A empresa foi criada através de Carta Régia de 4 de dezembro de 1810, como uma sociedade de capital misto, com 13 ações pertencentes à Coroa Portuguesa e 47 a acionistas particulares de São Paulo, do Rio de Janeiro e da Bahia. Para implantá-la foi criado o Distrito do Ipanema e trazida para a região uma equipe de técnicos sueca, contratada em dezembro de 1809, liderada por Carl Gustav Hedberg.
  • Além da presença de jazidas de magnetita, foram decisivos para a escolha do local, a abundância de madeira que alimentaria os fornos, e de água, força motriz por excelência até meados do século XIX. Em 1815, Hedberg foi substituído pelo alemão Ludwig Wilhelm Varnhagen (pai de Francisco Adolfo de Varnhagen), incumbido de construir os altos fornos da fábrica, inaugurados em 1818. Em 1820, José Bonifácio visitou a Fábrica e redigiu uma Memória, com críticas à arquitetura funcional dos altos fornos.
Dos Altos Fornos da Real Fábrica de Ferro de Ipanema sob a direção de João Bloem saíram armas e munições para a Revolta Liberal, e muitos dos artigos necessários ao Brasil do século XIX, de panelas de ferro a engenhos de açúcar e café, gradis, , escadas,luminárias, etc., com artigos premiados em feiras nacionais e internacionais, à época.
  • A Fábrica vive um momento de crescimento e investimento sob a direção do Coronel Mursa, entre 1865 e 1890. Uma das técnicas que Mursa utilizou para garantir suporte econômico para o empreendimento foi a distribuição de coleções de objetos ligados a fabricação do ferro em Ipanema. Uma caixa desses objetos pode ser vista no Museu Republicano de Itu e outra faz parte do acervo do Museu Nacional , no Rio de Janeiro.
Considerada o berço da siderurgia nacional, a Real Fábrica de Ferro de Ipanema conserva menos de 20% de seu conjunto original. Os seus altos fornos, geminados, existem até hoje e encontram-se sob a guarda do ICMBio, por meio da Floresta Nacional de Ipanema, em Iperó.
  • Documentos oficiais da Fábrica encontram-se arquivados e, em sua maioria, para livre consulta, em diferentes instituições: Arquivo Nacional, Biblioteca Nacional do Brasil (Rio de Janeiro) e Arquivo Público do Estado de São Paulo (São Paulo).Exemplares de livros suecos sobre siderurgia, correspondentes aos trazidos por Hedberg em 1810, estão disponíveis para consulta na Biblioteca de Livros Raros da Escola Politécnica da USP.

A ferrovia foi um dos fatores do desenvolvimento industrial, que teve início com a Real Fábrica de Ferro São João do Ipanema, primeira metalúrgica em escala industrial da América Latina.