domingo, 30 de agosto de 2015

Transversalidade e Meio Ambiente

Transversalidade e Meio Ambiente

  • Conhecemos o processo histórico de constituição das diferentes ciências. Com a criação do método científico moderno, naqueles campos de saberes em que indivíduos já vinham há séculos especulando” ou mesmo “experimentando” com o objetivo de produzir um conhecimento dito “verdadeiro”, o recorte de um objeto definido possibilitou a emergência de uma disciplina.
Assim se deu com a física: as especulações produzidas desde a Antiguidade grega, as experimentações ainda não totalmente metódicas de um Galileu, por exemplo, ao se encontrarem com o método, produziram uma nova forma de olhar o real, buscando a significação última de suas leis fundamentais. Processo semelhante aconteceria com a química, com a biologia e com os demais campos do saber.
  • A disciplinarização está, pois, na origem da constituição da ciência tal como a conhecemos hoje. Mas essa ramificação, essa capilarização, não é exclusiva da ciência; em certa medida, podemos afirmar que ela é a tendência básica de todo o saber humano. Sendo a realidade múltipla, o intelecto humano, em seu afã de conhecimento, sempre procurou abarcá-la. Num primeiro momento, a tentativa – bastante pretensiosa, diga-se de passagem – foi a de abarcar a realidade como una, compreendendo-a num saber de totalidade. Assim foi e tem sido com a religião, assim foi e tem sido com as filosofias de cunho metafísico. Mas mesmo aí aos poucos se foi percebendo que essa realidade era mesmo multifacetada, e mesmo que pudesse ser abarcada como totalidade, ela mostraria nuanças e distinções.
Começam aí, nessa Antiguidade da qual nem ao menos podemos precisar o momento, os empreendimentos de compartimentalização do real, de forma que ele pudesse ir sendo conhecido por partes, rumo a uma compreensão total. Quando examinamos, por exemplo, a vasta obra de Aristóteles, percebemos que ele foi talvez o primeiro grande enciclopedista a procurar abarcar como distintos os vários gêneros de saberes humanos, buscando sua articulação. Vale destacar aqui que a palavra enciclopédia deriva do grego e indica um conhecimento circular (a forma perfeita da totalidade) da Paidéia, isto é, da cultura. Com o desenvolvimento da ciência moderna, torna-se cada vez mais difícil (e virtualmente impossível) que alguém possa dedicar-se a todos os campos de saberes, visando a uma compreensão total do real, dada a quantidade e a complexidade de saberes que vão sendo produzidos.
  • Emerge então a especialização. A ciência moderna autonomiza-se e especializa-se em torno de seu objeto. Ele é o foco central do qual depende sua identidade. E cada vez mais o cientista se volta para seu objeto, tornado autônomo, sem preocupar-se com o que está a sua volta.
Mas se a especialização potencializa o conhecimento do objeto, por outro lado ela acaba por isolar esse objeto, e isso de certa forma o mutila. De modo alegoricamente provocativo, Nietzsche (1998, p. 295) afirmou: “... todo o especialista tem a sua corcunda. Um livro erudito também espelha sempre uma alma que se tornou tortuosa: todo o ofício força o homem a entortar-se”. Talvez pudéssemos aproveitar essa provocação e afirmar que todo cientista moderno possui sua corcunda; cada um a sua maneira debruça-se única e exclusivamente sobre um objeto, perdendo a dimensão de sua relação com os demais.
  • O desenvolvimento da ciência do século XVII ao século XX foi magnífico, seja em termos de velocidade, quantidade ou complexidade. A compartimentalização e a especialização possibilitaram que cada área do saber, fechada em sua autonomia, crescesse de maneira talvez inimaginável, não fôssemos nós testemunhas oculares do fato. Parece haver no conhecimento humano em geral, e no científico em particular, algo que o impulsiona para um crescimento cada vez mais acelerado, que não prevê limites.
Na obra Os desafios da racionalidade, o filósofo Jean Ladrière afirma que a ciência, embora seja uma criação humana para responder às suas necessidades cotidianas, para resolver os problemas com os quais nos defrontamos diuturnamente, parece ganhar autonomia, afastando-se da vida humana e de seu cotidiano. Afirma Ladrière que a ciência é animada por uma lógica interna que a leva a querer sempre saber mais, não importando os limites e as conseqüências desse conhecimento. Em lugar de a ciência ser um instrumento humano em sua lida diária, é o humano que passa a ser um instrumento da ciência, para que ela evolua sempre mais, para que o conhecimento seja cada vez mais aprofundado e abrangente.
  • Em suma, a ciência deixa de dizer respeito à vida humana e passa a agir como um organismo autônomo, segundo a lógica de que o que importa é o saber pelo saber. Na segunda metade do século XIX, Nietzsche, um dos primeiros filósofos a afirmar a multiplicidade da vida e do mundo, já apresentava uma postura essencialmente crítica dessa empresa científica. O filósofo alemão foi talvez o primeiro crítico do positivismo (e provavelmente o mais ácido dos críticos), num momento em que o positivismo dominava corações e mentes da Europa e do Novo Mundo. Para esse filósofo, a ciência deve tratar da vida humana; o conhecimento só faz sentido quando trata da vida. Daí sua proposta de uma gaia ciência, de um saber alegre, não perdido na sisudez irrefletida do saber pelo saber.
Na perspectiva crítica do filósofo alemão, a ciência nem nos torna mais íntimos de Deus, nem possibilita um conhecimento útil e inocente acima de qualquer suspeita. Ao contrário, a ciência responde a interesses, não poucas vezes escusos, e sua ânsia do saber pelo saber leva-a para longe da vida humana, muitas vezes estando a serviço da extinção de vidas humanas. O saber pelo saber, que compartimenta o mundo para saber “cada vez mais sobre cada vez menos”, não atende aos interesses humanos. De forma que, já em Nietzsche, encontramos uma forte crítica à disciplinaridade da ciência.

Disciplinarização na educação:
  • Não tenho dúvidas de que a disciplinarização pedagógica nada mais é que um reflexo, uma continuidade, uma decorrência da disciplinarização epistemológica. No campo da pedagogia moderna, a compartimentalização e a autonomização da ciência vão encontrar espaço e ganhar ainda mais terreno.
A pedagogia moderna desenvolveu-se animada por aquela “vontade de verdade”, para usar o conceito de Nietzsche, que levou ao método científico e à autonomização das ciências; e segue, ainda hoje, balizada por uma “vontade de ser ciência”, fiel ao mais puro espírito positivo do século XIX.
  • No contexto da cientificidade da pedagogia, a organização curricular encontrou terreno fértil na disciplinarização. O modelo arbóreo ou radicular de capilarização do conhecimento científico serviu muito bem de planta para a fixação dos currículos escolares. A especialização dos saberes permitiu a especialização dos professores, do material didático e do espaço pedagógico. A fragmentação dos saberes permitiu o fracionamento do tempo escolar em aulas estanques. E tudo isso possibilitou que o processo pedagógico pudesse passar pelo crivo de um rígido controle, que pôde, por sua vez, dar à pedagogia a ilusão de que logrou êxito em seu afã de se constituir como ciência.
No currículo disciplinar, tudo pode ser controlado: o que o aluno aprende, como aprende, com que velocidade o processo acontece e assim por diante. Tudo pode ser avaliado: o desempenho do aluno, a “produtividade” do professor, a eficácia dos materiais didáticos, etc. Da mesma forma, todo o processo pode ser metrificado, e o desempenho do aluno traduzido numa nota, às vezes com requintes de fragmentação incorporados no número de casas decimais. O currículo disciplinar atende, assim, aos requisitos básicos de uma pedagogia moderna forjada sob o signo da disciplinaridade científica.

Disciplina e poder:
  • Os sentidos da disciplinaridade não se resumem à base epistemológica. A palavra disciplina é ambígua, e não podemos ser ingênuos a ponto de pensar que essa ambiguidade se dá por acaso. Ao mesmo tempo em que denota uma área específica de saber, disciplina também denota a rigidez da resposta ao exercício de um poder, seja de um outro sobre mim, seja de mim sobre mim mesmo.
Dizer que a escola é disciplinar, portanto, significa dizer que ela é o espaço do aprendizado de saberes, por um lado, e que é o lugar do aprendizado do autocontrole, por outro lado. Em sua aula inaugural no Collège de France em 1970, publicada sob o título A ordem do discurso, Foucault aponta a disciplina como uma das formas de se exercer o controle sobre os discursos. Afirmou ele:
Para pertencer a uma disciplina, uma proposição deve poder inscrever-se num certo horizonte teórico (...) No interior de seus limites, cada disciplina reconhece proposições verdadeiras e falsas; mas ela repele, para fora de suas margens, toda uma teratologia do saber (...) uma proposição deve preencher exigências complexas e pesadas para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina; antes de poder ser declarada verdadeira ou falsa, deve encontrar-se, como diria M. Canguilhem, “no verdadeiro ” (1996, p. 33-34).
E, mais adiante, lemos:
A disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras. Tem-se o hábito de ver na fecundidade de um autor, na multiplicidade dos comentários, no desenvolvimento de uma disciplina, como que recursos infinitos para a criação dos discursos. Pode ser, mas não deixam de ser princípios de coerção; e é provável que não se possa explicar seu papel positivo e multiplicador, se não se levar em conta sua função restritiva e coercitiva (idem, p. 36).
Do mesmo modo que a disciplina é uma forma de legitimação do discurso (e aqui seria novamente interessante uma análise da “vontade de verdade” que move a pedagogia em sua tentativa de se legitimar como área científica autônoma...) e, portanto, do exercício de um poder, podemos afirmar que a fragmentação dos saberes em disciplinas se dá também no âmbito de um exercício de poder. Lembremo-nos da antiga máxima política: “Dividir para governar”. Fragmentar os saberes é também uma forma de fragmentação dos poderes.
  • Controlar o acesso aos saberes, controlar aquilo que se sabe e aquilo que não se sabe, é um dos mais fortes (embora mais dissimulados) exercícios de poder da modernidade, e uma das principais ferramentas para o exercício desse poder foi e tem sido a escola, por meio do currículo disciplinar. No contexto da sociedade capitalista, na qual o conhecimento é mais uma mercadoria, sua fragmentação significa também mais uma forma de exercício do poder do capital.
Hoje, quando se anuncia cada vez em mais alto som a emergência de uma “sociedade do conhecimento”, em que o saber acaba mostrando-se como a principal moeda de troca, o exercício do poder disciplinar é também cada vez mais intenso.
  • No entanto, a disciplina do currículo escolar estende-se para além dos próprios saberes e de seu exercício; nas instituições modernas, na escola em particular, a disciplina encarna-se nos corpos. Se a escola é o lugar do aprendizado, pelo indivíduo, dos saberes, é também o espaço onde o indivíduo aprende seu lugar. Nas instituições, nada é por acaso; na escola, a geopolítica dos prédios e do interior das salas de aula é muito bem planejada, visando a essa incorporação do poder disciplinar.
A busca interdisciplinar:
  • A disciplinaridade, em princípio inquestionável, passou a ser questionada. Primeiro, no âmbito epistemológico. Se a especialização conseguiu, num primeiro momento, responder aos problemas humanos e à sede de saber científico, em fins do século XIX e no início do século XX ela começa a apresentar desgastes, e foi com a mais antiga das ciências modernas, a física, que os desgastes começaram a aparecer. 
No interior de uma ciência baseada na perfeição do universo, na precisão das medidas e na certeza das previsões, apareceram os princípios da indeterminação, da incerteza, da relatividade. Problemas que já não podiam mais ser resolvidos pela especialidade de uma única ciência começaram a aparecer: um acidente ecológico remete para a biologia, a química, a física, a geografia, a política... De forma bastante interessante, Bruno Latour analisou a emergência e a proliferação dos híbridos. Apenas um exemplo, dos muitos que podem ser retirados cotidianamente das páginas dos jornais, deixa clara essa hibridização:
O mesmo artigo mistura, assim, reações químicas e reações políticas. Um mesmo fio conecta a mais esotérica das ciências e a mais baixa política, o céu mais longínquo e uma certa usina no subúrbio de Lyon, o perigo mais global e as próximas eleições ou o próximo conselho administrativo. As proporções, as questões, as durações, os atores não são comparáveis e, no entanto, estão todos envolvidos na mesma história (1994, p. 7).
Não nos esqueçamos de que híbrido deriva da hybris grega, a desmesura, a mistura, a impureza, o monstruoso, o desequilíbrio. Dar conta do híbrido, esse monstro moderno, remete- nos para os arquétipos míticos do saber humano, sempre preocupado com a perfeição.
  • Os cientistas, preocupados e curiosos, começam então a explorar as fronteiras por entre as ciências, e dessa exploração surge a proposta da interdisciplinaridade, uma tentativa de transcender limites, de estabelecer comunicabilidade, de reconectar as ligações desfeitas ou perdidas com o movimento da especialização.
A interdisciplinaridade complexifica-se: fala-se em diversas modalidades, além de uma pluridisciplinaridade, de uma transdisciplinaridade, como formas de conectar os mais diversos campos de saberes e possibilitar sua comunicação, inclusive com a criação de novos campos, não mais disciplinares, mas efetivamente interdisciplinares.
  • A perspectiva interdisciplinar não tarda a chegar ao campo da pedagogia, quando não pelos mesmos motivos, mas pelas mostras de esgotamento do modelo disciplinar de currículo. Aquilo que em princípio se mostrava como o fundamento da cientificidade e da produtividade no processo educativo começa a ser questionado como estanque e linear. 
Em outras palavras, os professores começam a se incomodar com o fato de os alunos não serem capazes de estabelecer as interconexões entre as diferentes disciplinas como eles gostariam que acontecesse. Nesse modelo, a maioria dos alunos não consegue estabelecer as relações entre a matemática e a física, entre a geografia e a história, para citar apenas dois exemplos.
  • A interdisciplinaridade vai justamente ser pensada no âmbito da pedagogia como a possibilidade de uma nova organização do trabalho pedagógico que permita uma nova apreensão dos saberes, não mais marcada pela absoluta compartimentalização estanque das disciplinas, mas pela comunicação entre os compartimentos disciplinares. Assim como epistemologicamente a interdisciplinaridade aponta para a possibilidade de produção de saberes em grupos formados por especialistas de diferentes áreas, pedagogicamente ela indica um trabalho de equipe, no qual os docentes de diferentes áreas planejem ações conjuntas sobre um determinado assunto.
Das várias propostas para viabilizar a interdisciplinaridade, tocarei aqui – e de forma muito breve – em apenas uma delas, dada sua atualidade. Sabemos que os Parâmetros Curriculares Nacionais preparados pelo MEC introduzem a idéia dos temas transversais. Esses temas são uma forma de se tentar viabilizar a interdisciplinaridade, introduzindo assuntos que devem ser tratados pelas diversas disciplinas, cada uma a sua maneira. O currículo passa a ser organizado em disciplinas (ou áreas disciplinares, no caso do Ensino Fundamental em sua primeira fase) e em temas transversais. A experiência espanhola, na qual a nossa está baseada, é ousada, ao colocar os temas – voltados para o cotidiano – como centro de organização do currículo, articulando as disciplinas em torno deles.

Transversalidade e Meio Ambiente

Os PCNs e os temas transversais: 
Alternativa ao currículo disciplinar?

A perspectiva dos temas transversais é apresentada como proposta de se dar ao currículo uma dimensão social e contemporânea, ao discutir temas relevantes em determinado contexto histórico-social. A idéia é ter um currículo mais flexível, pois os temas podem ser alterados sem que se alterem as disciplinas “clássicas” que o compõem. Vejamos a argumentação apresentada:
  • O Convívio Social e Ética aparece nos PCNs reafirmando a função social da escola de formar cidadãos capazes de intervir criticamente na sociedade em que vivem. Para tal, é necessário que o currículo contemple temas sociais atuais e urgentes que não estão, necessariamente, contemplados nas áreas tradicionais do currículo, temas estes que aparecem transversalizados nas áreas já existentes, isto é, permeando-as no decorrer de toda a escolaridade obrigatória e não criando uma nova área. 
Apesar de as aprendizagens relativas a esses temas se explicitarem na organização dos conteúdos das áreas tradicionais, a forma como devem ser conceitualizados e tratados junto aos alunos está especificada nos textos de fundamentação por tema. Os temas eleitos são: Ética, Saúde, Meio Ambiente, Estudos Econômicos, Pluralidade Cultural e Orientação Sexual (Brasil, 1995, p. 16). 
Os temas transversais não devem, portanto, criar uma nova área curricular. Isso prejudicaria a flexibilidade que se pretende alcançar com sua introdução. Eles devem dizer respeito a temas de um cotidiano dinâmico em transformação, portanto também devem ter a agilidade de poder ser alterados com facilidade e rapidez. E devem dizer respeito a temas sociais, contemporâneos. Com isso em vista, os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental elegem a cidadania como eixo do currículo; essa é uma opção política que fica clara no documento publicado pelo MEC em 1997:
Eleger a cidadania como eixo vertebrador da educação escolar implica colocar- se explicitamente contra valores e práticas sociais que desrespeitem aqueles princípios, comprometendo-se com as perspectivas e as decisões que os favoreçam. Isso refere-se a valores, mas também a conhecimentos que permitam desenvolver as capacidades necessárias para a participação social efetiva.
Uma pergunta deve então ser respondida: as áreas convencionais, classicamente ministradas pela escola, como Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, História e Geografia, não são suficientes para alcançar esse fim? A resposta é negativa.
Dizer que não são suficientes não significa absolutamente dizer que não são necessárias. É preciso ressaltar a importância do acesso ao conhecimento socialmente acumulado pela humanidade. Porém, há outros temas diretamente relacionados com o exercício da cidadania, há questões urgentes que devem necessariamente ser tratadas, como a violência, a saúde, o uso dos recursos naturais, os preconceitos, que não têm sido diretamente contemplados por essas áreas. Esses temas devem ser tratados pela escola, ocupando um mesmo lugar de importância (Brasil, 1997, p. 25).
Se as áreas curriculares “clássicas” – também poderíamos dizer as disciplinas – não são capazes de, sozinhas, desenvolver uma educação que tenha como eixo norteador a construção da cidadania, os temas transversais vão ocupar esse espaço, trazendo a um currículo supostamente “neutro” de tradição positivista questões que de outra forma ficariam de fora do processo educativo.A educação para a cidadania requer, portanto, que questões sociais sejam apresentadas para a aprendizagem e a reflexão dos alunos.
(...) Os Parâmetros Curriculares Nacionais incorporam essa tendência e a incluem no currículo de forma a compor um conjunto articulado e aberto a novos temas, buscando um tratamento didático que contemple sua complexidade e sua dinâmica, dando-lhes a mesma importância das áreas convencionais. O currículo ganha em flexibilidade e abertura, uma vez que os temas podem ser priorizados e contextualizados de acordo com as diferentes realidades locais e regionais e outros temas podem ser incluídos (idem, p. 19).
Sabemos que na produção dos PCNs o MEC buscou inspiração na experiência espanhola, cuja reforma do ensino promoveu a introdução dos temas transversais no currículo, experiência essa que se vem desenvolvendo desde 1989. Num texto da professora Montserrat Moreno, da Universidade de Barcelona, encontramos ponderações importantes para a introdução desses temas no currículo. Afirma ela:
É preciso retirar as disciplinas científicas de suas torres de marfim e deixá-las impregnar-se de vida cotidiana, sem que isso pressuponha, de forma alguma, renunciar às elaborações teóricas imprescindíveis para o avanço da ciência (Moreno in Busquets et alii, 1997, p. 35).
E, mais adiante:
Os temas transversais destinam-se a superar alguns efeitos perversos – aqueles dos quais a sociedade atual se conscientizou – que, junto com outros de grande validade, herdamos da cultura tradicional. Estas questões devem ocupar um lugar secundário no ensino só porque não faziam parte das preocupações da ciência clássica? Se fizéssemos isto, estaríamos concedendo mais importância às preocupações do passado que às do presente, isto é, estaríamos vivendo e educando com o olhar continuamente voltado para trás (idem, p. 36).
Nessa perspectiva, fica evidente que os temas transversais devem ganhar destaque no currículo e ser levados a sério. Não basta que cada professor, no contexto de sua área ou disciplina, toque em questões eleitas como socialmente relevantes, seja o meio ambiente, a diversidade cultural ou a sexualidade; é preciso, na verdade, que todo o currículo esteja organizado em torno dessas questões. Para dizer de outra maneira, não é suficiente que os temas transversais sejam um apêndice das áreas e das disciplinas curriculares; ao contrário, eles devem passar a ser o eixo em torno do qual as disciplinas e as áreas se organizem, ressignificando as próprias disciplinas. Recorramos uma vez mais à experiência espanhola, por intermédio da professora Moreno:
Os temas transversais, que constituem o centro das atuais preocupações sociais, devem ser o eixo em torno do qual deve girar a temática das áreas curriculares, que adquirem assim, tanto para o corpo docente como para os alunos, o valor de instrumentos necessários para a obtenção das finalidades desejadas (idem, p. 37).
Dessa forma, a escola ganha um novo sentido, passando de um mero espaço de acesso a informações (um modelo já um tanto caduco...) para um espaço de formação socialmente relevante, no qual as informações são um meio, mas nunca um fim em si mesmas. Para que isso seja possível, os temas transversais devem ser muito bem escolhidos. 
  • Os critérios que nortearam a adoção dos temas propostos foram: urgência social; abrangência nacional; possibilidade de ensino e aprendizagem no Ensino Fundamental; favorecimento da compreensão da realidade e da participação social.
Em síntese, os temas transversais são apresentados como assuntos que devem permear as diferentes disciplinas, atravessando-as horizontalmente, mas também cortando verticalmente o currículo, ao longo dos diversos ciclos e séries. Reproduzo a seguir os quatro pontos apresentados como definidores da proposta de transversalidade nos PCNs: • os temas não constituem novas áreas; pressupõem um tratamento integrado nas diferentes áreas;
a proposta de transversalidade traz a necessidade de a escola refletir e atuar conscientemente na educação de valores e atitudes em todas as áreas, garantindo que a perspectiva político-social se expresse no direcionamento do trabalho pedagógico; influencia a definição de objetivos educacionais e orienta eticamente as questões epistemológicas mais gerais das áreas, seus conteúdos e, até mesmo, as orientações didáticas;
• a perspectiva transversal aponta uma transformação da prática pedagógica, pois rompe a limitação da atuação dos professores às atividades formais e amplia a sua responsabilidade com a sua formação dos alunos. Os temas transversais permeiam necessariamente toda a prática educativa que abarca relações entre os alunos, entre professores e alunos e entre diferentes membros da comunidade escolar; a inclusão dos temas indica a necessidade de um trabalho sistemático e contínuo no decorrer de toda a escolaridade, o que possibilitará um tratamento cada vez mais aprofundado das questões eleitas (Brasil, 1997, p. 38-39).
Isso posto, vou me deter num ponto que julgo fundamental: a adoção dos temas transversais, mesmo nessa perspectiva de colocá-los como eixo do currículo, significa um rompimento, de fato, com o currículo disciplinar?
  • Penso que não. Como pudemos ver pela análise dos documentos preparados pela Secretaria de Ensino Fundamental do MEC, o currículo continua sendo disciplinar, as áreas e os ciclos servindo apenas de preparação para uma posterior disciplinarização. E os temas transversais estão propostos para atravessar transversalmente as diferentes disciplinas, procurando quebrar um pouco de sua rigidez e tornar-se o eixo de significação do processo educativo, deslocando-o dos saberes disciplinares “clássicos”.
No documento de 1997, apresenta-se interdisciplinaridade e transversalidade como realidades próximas mas distintas: enquanto a primeira diz respeito aos aspectos epistemológicos (isto é, da produção do conhecimento), a segunda refere-se a aspectos pedagógicos (isto é, à socialização dos conhecimentos). Vejamos:
Ambas – transversalidade e interdisciplinaridade – se fundamentam na crítica de uma concepção de conhecimento que toma a realidade como um conjunto de dados estáveis, sujeitos a um ato de conhecer isento e distanciado. Ambas apontam a complexidade do real e a necessidade de se considerar a teia de relações entre os seus diferentes e contraditórios aspectos. Mas diferem uma da outra, uma vez que a interdisciplinaridade refere-se a uma abordagem epistemológica dos objetos de conhecimento, enquanto a transversalidade diz respeito principalmente à dimensão da didática (p. 40).
Mas, por outro lado, quando trabalhadas no currículo, ambas complementam-se, possibilitando uma nova dimensão social do processo educativo, que transcende o aprender pelo aprender puro e simples, desprovido de sentido sociopolítico:
  • Na prática pedagógica, interdisciplinaridade e transversalidade alimentam-se mutuamente, pois o tratamento das questões trazidas pelos temas transversais expõe as inter-relações entre os objetos de conhecimento, de forma que não é possível fazer um trabalho pautado na transversalidade tomando-se uma perspectiva disciplinar rígida. A transversalidade promove uma compreensão abrangente dos diferentes objetos de conhecimento, bem como a percepção da implicação do sujeito na sua produção, superando a dicotomia entre ambos. 
Por essa mesma via, a transversalidade abre espaço para a inclusão de saberes extraescolares, possibilitando a referência a sistemas de significado construídos na realidade dos alunos. Os temas transversais, portanto, dão sentido social a procedimentos e conceitos próprios das áreas convencionais, superando assim o aprender apenas pela necessidade escolar.
  • Essas afirmações vêem confirmar minha tese de que a proposta da transversalidade exposta nos PCNs conseguiria, desde que aplicada em condições ideais e atingindo os objetivos a que se propõe, tornar concreto, na escola, o ideal da interdisciplinaridade. Mas uma proposta de transversalidade assumida apenas como ação pedagógica é por demais singela. Parece-me que ela pode – e deve! – ser vista como muito mais que isso.
Dessa maneira, podemos afirmar que os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental se não constituem uma alternativa ao currículo disciplinar, são um importante passo para a sua superação.

A transversalidade para além da interdisciplinaridade:
  • Uma das alternativas para um currículo não disciplinar que tem sido trabalhada é a do currículo em rede. Por outro lado, amparado por filósofos franceses contemporâneos, como Foucault e Deleuze, tenho trabalhado a idéia da transversalidade aplicada à produção e à circulação dos saberes. Ela pode ser estendida também à educação, ajudando a pensar um currículo não disciplinar.
Antes de qualquer coisa, é necessário que se rompa com a metáfora clássica de concepção do mapa dos saberes, que é a da árvore. Na árvore do conhecimento, temos o mito representado nas raízes, a filosofia no tronco, e as ramificações nos galhos indicam as diferentes ciências e suas especialidades.
Esse mapa ou modelo implica necessariamente uma visão hierárquica, em que o percurso, o fluxo por entre esses saberes é predefinido, os caminhos são poucos e predeterminados. A comunicação entre os campos é possível, desde que obedeça à hierarquia. 
  • Comunicar um galho com outro, só se for respeitado o percurso. Por mais que essa metáfora, modelo ou paradigma pareça apenas um meta-conhecimento, na medida em que ela está enraizada em nossa própria forma de pensar, em nossa lógica básica, acaba por determinar nosso próprio pensamento.
A metáfora da rede tem sido utilizada como uma outra possibilidade de se pensar o conhecimento, formado por múltiplos fios e nós de interconexões. Mas mesmo a rede parece um tanto ordenada, embora rompa com a hierarquia do modelo arbóreo. Mais caótico e, portanto, absolutamente não hierárquico e potencialmente mais libertário, parece-me o modelo do rizoma, que Deleuze e Guattari utilizam para comentar as possibilidades infinitas de um livro, se ele não for tomado numa estrutura clássica e hierárquica de capítulos.
  • Dessa forma, se tomarmos o mapa dos saberes como um imenso rizoma, um liame de fios e nós, sem começo e sem fim, teremos infinitas possibilidades de transitar entre eles, sem nenhum vestígio de hierarquia, e aí entra a transversalidade. 
Ela seria justamente a forma de trânsito por entre os saberes, estabelecendo cortes transversais que articulem vários campos, várias áreas. A transversalidade, no sentido em que é aqui trabalhada, implica uma nova atitude diante dos saberes, tanto na sua produção quanto na sua comunicação e aprendizado.

Como pensar um currículo transversal e rizomático?
  • Em primeiro lugar, seria necessário deixar de lado qualquer pretensão científica da pedagogia. Como seria possível controlar, prever, quantificar os diferentes cortes transversais no mapa dos saberes? O processo educativo passaria a ser uma heterogênese, para utilizar um termo de Deleuze e Guattari, uma produção singular a partir de múltiplos referenciais, da qual não há sequer como vislumbrar, de antemão, o resultado. Em segundo lugar, seria necessário deixar de lado qualquer pretensão massificante da pedagogia.
O processo educativo seria necessariamente singular, voltado para a formação de uma subjetividade autônoma, completamente distinta daquela resultante do processo de subjetivação de massa que hoje vemos como resultante das diferentes pedagogias em exercício.
  • Em terceiro lugar, seria necessário abandonar a pretensão ao uno, de compreender o real como uma unidade multifacetada, mas ainda assim unidade. A perspectiva interdisciplinar ressente-se de que na disciplinarização se cai numa fragmentação, buscando assim recuperar a unidade perdida. Uma educação rizomática, por sua vez, abre-se para a multiplicidade, para uma realidade fragmentada e múltipla, sem a necessidade mítica de recuperar uma ligação, uma unidade perdida. Os campos de saberes são tomados como absolutamente abertos; com horizontes, mas sem fronteiras, permitindo trânsitos inusitados e insuspeitados. Pensar uma educação e um currículo não disciplinares, articulados em torno de um paradigma transversal e rizomático do conhecimento soa hoje como uma utopia. 
Nossa escola é de tal maneira disciplinar que nos parece impossível pensar um currículo tão caótico, anárquico e singular. Mas já houve momentos na história da humanidade em que parecia loucura lançar-se aos mares em busca de terra firme para além do continente europeu, ou então se lançar ao espaço almejando a lua e as estrelas...

Transversalidade e Meio Ambiente