sábado, 17 de outubro de 2015

O Acordo de Pesca e a Agricultura Familiar

O “Acordo de pesca”, na ótica da agricultura familiar: um instrumento participativo de ordenamento e regulamentação dos recursos pesqueiros

  • A Lei Federal Nº 11.959, de 29 de junho de 2009, dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca, além de regular as atividades pesqueiras. Mas, este texto legislativo não destaca a pesca como a única atividade pesqueira, bem como, não limita os recursos pesqueiros aos animais hidróbios passíveis de exploração, o que demonstra certa complexidade temática, quando consideramos as diferentes categorias e possibilidades de atividades, inseridas no universo dos recursos naturais.
Em muitas partes do Brasil, tem aumentado o número de conflitos pelo uso e comércio dos recursos pesqueiros, sendo a pesca descontrolada a responsável pelas situações de enfrentamento entre pescadores comerciais e comunidades tradicionais que desenvolvem a pesca de subsistência, para fins de sustento de suas famílias. 
  • Para isso, a Lei 11.326, de 24 de julho de 2006, ao estabelecer as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais, tem beneficiado os pescadores que praticam a atividade pesqueira artesanal (praticada por profissional, em regime de economia familiar, com meios de produção próprios ou em regime de parceria) ou de subsistência (com fins de consumo doméstico ou escambo sem fins de lucro). 
Na prática, geralmente, estes pescadores são agricultores familiares, pois, na agricultura familiar, as atividades de produção não envolvem, apenas, o ambiente ‘terra’.
  • Os primeiros ‘acordos de pesca’ surgem no Brasil, como uma maneira democrática e participativa de lidar com os conflitos, sendo realizados por lideranças das próprias comunidades, sem a necessidade de serem regulamentados ou legalizados. Em 1997, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) considera viável o processo de legalização destes acordos e, em 2003, publica a Instrução Normativa Nº 29, que reconhece o acordo de pesca como um instrumento de ordenamento e regulamentação dos recursos pesqueiros (SALERA JÚNIOR, 2009).
A presente produção está centrada no contexto da gestão participativa dos recursos naturais, na agricultura familiar. Porém, em função da necessidade de limitação, ganha um recorte temático e volta-se, especificamente, para a gestão participativa dos recursos pesqueiros. 
  • A ótica da agricultura familiar é mantida, e o ‘acordo de pesca’ passa a ser o objeto central de investigação. Enquanto resultado de um estudo bibliográfico, esta produção tem uma abordagem interdisciplinar e procura, na perspectiva da gestão participativa, responder ao seguinte problema de pesquisa: de que forma o ‘acordo de pesca’ contribui com o ordenamento e a regulamentação dos recursos pesqueiros, em comunidades de agricultura familiar?
 Logo, tal estudo objetiva a análise de como o acordo de pesca contribui com o ordenamento e a regulamentação dos recursos pesqueiros, em comunidades de agricultura familiar; estando norteado a partir dos seguintes conceitos: Acordo de Pesca (SALERA JÚNIOR, 2009; IBAMA, 2003); 
  • Gestão Participativa (CERDEIRA; CAMARGO, 2008; GODARD, 2002; IBAMA, 2007); Recursos Pesqueiros (BRASIL, 2009) e Agricultura Familiar (VIEIRA, 2005; BRASIL, 2006). O contexto da integração multifuncional está baseado no conceito de multifuncionalidade defendido por Sabourin (2008). 
O texto está dividido em duas partes: a primeira apresenta uma síntese teórica, respectivamente, sobre os termos ‘acordo de pesca’, ‘agricultura familiar’ e ‘gestão participativa dos recursos pesqueiros’; estando subdividida em três seções. A segunda aborda o processo relacional existente entre as variáveis ‘agricultura familiar’, ‘gestão participativa dos recursos pesqueiros’ e ‘acordo de pesca’; enfatizado sob a ótica da integração multifuncional.

Acordo de Pesca:
  • Dentre outros assuntos, a Lei 11.959/2009 trata da questão da sustentabilidade do uso dos recursos pesqueiros e da atividade de pesca. 
Em seu artigo 3º, esta lei atribui ao poder público a competência de regulamentação da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Atividade Pesqueira, conciliando o equilíbrio entre o princípio da sustentabilidade dos recursos pesqueiros e a obtenção de melhores resultados econômicos e sociais, calculando, autorizando ou estabelecendo em cada caso: os regimes de acesso; a captura total permissível; o esforço de pesca sustentável; os períodos de defeso; as temporadas de pesca; os tamanhos de captura; as áreas interditadas ou de reservas; as artes, os aparelhos, os métodos e os sistemas de pesca e cultivo; a capacidade de suporte dos ambientes; as necessárias ações de monitoramento, controle e fiscalização da atividade; e a proteção de indivíduos em processo de reprodução ou recomposição de estoques. 
  • O parágrafo 1º, deste mesmo artigo, estabelece que o ordenamento pesqueiro deva considerar as peculiaridades e as necessidades dos pescadores artesanais, de subsistência e da aquicultura familiar, visando a garantir sua permanência e sua continuidade (BRASIL, 2009).
Sabe-se que o ‘acordo de pesca’ é um mecanismo de ordenamento e regulamentação participativa utilizado na gestão dos recursos pesqueiros, que além de buscar a estabilidade ou a redução da pressão sobre os estoques de pesca, tenta aumentar sua produtividade em longo prazo. Partindo do pressuposto, considera-se ordenamento pesqueiro “o conjunto de normas e ações que permitem administrar a atividade pesqueira, com base no conhecimento atualizado dos seus componentes biológico-pesqueiros, ecossistêmicos, econômicos e sociais” (BRASIL, 2009, p. 2). 
  • A elaboração de um acordo de pesca é processual e atende às regras específicas publicadas pelo IBAMA, através da Instrução Normativa Nº 29, publicado em 31 de dezembro de 2002. Após serem negociados, estes acordos são publicados oficialmente e ganham um reconhecimento por parte do instituto (RASEIRA; RUFFINO; CÂMARA, 2006). 
Convém destacar que a Instrução Normativa Nº 29/2002, do IBAMA,  nove procedimentos para o estabelecimento de um acordo de pesca: 
  1. Mobilização; 
  2. Reuniões comunitárias; 
  3. Assembleia intercomunitária; 
  4. Retorno das propostas discutidas e aperfeiçoadas, para as comunidades; 
  5. Assembleias intercomunitárias (quantas necessárias para obtenção de um consenso); 
  6. Encaminhamento ao IBAMA; 
  7. Divulgação da portaria; 
  8. Monitoramento; e 
  9. Avaliação. 
A análise destes procedimentos gera a compreensão de que um ‘acordo de pesca’ passa por uma complexidade que envolve vários dias para a sua construção e que o seu sucesso vai depender da participação comunitária, bem como, da capacidade de articulação e compromisso dos atores sociais envolvidos. Como afirma Salera Júnior (2009, p. 2): “é preciso que a comunidade converse bastante e chegue a um ponto comum. É preciso diálogo [...]”.
  • Nesta produção, consideramos a definição de ‘acordo de pesca’ utilizada pelo IBAMA, em sua Instrução Normativa Nº 29/2002 (Artigo 1º, parágrafo único), uma vez que este órgão público é responsável pela regulamentação e normatização destes acordos no Brasil. De acordo com o Ibama (2003, p. 2): 
“Entende-se por Acordo de Pesca, um conjunto de medidas específicas decorrentes de tratados consensuais entre os diversos usuários e o órgão gestor dos recursos pesqueiros, em uma determinada área definida geograficamente”. Esta definição aponta para a percepção de que o acordo de pesca, além de coordenar e regulamentar a gestão dos recursos pesqueiros apresenta um caráter participativo, onde população e órgãos governamentais tomam decisões conjuntas em nome de um desenvolvimento sustentável. 
  • Outro aspecto importante a se considerar é o seu recorte geográfico, pois além de atender a natureza específica do recurso pesqueiro local, designa a escala espacial, sobre a qual é concebida e colocada, em ação, a dinâmica de gestão do mesmo. Como defende Godard (2002), um espaço de gestão deve viabilizar a implantação de um programa global visando à melhoria do potencial de recursos já existente.
Entretanto, vale ressaltar que, embora o IBAMA reconheça a importância do ‘acordo de pesca’, enquanto instrumento estratégico de gestão participativa dos recursos pesqueiros e de redução de conflitos sociais no curso das pescarias, ele estabelece critérios para a regulamentação destes acordos, no âmbito da comunidade pesqueira envolvida no processo. 
  • Dentre estes critérios, destacam-se: a necessidade de representação dos interesses coletivos atuantes sobre os recursos pesqueiros (assegurado o compromisso de proteção do meio ambiente, enquanto patrimônio público); a manutenção da exploração sustentável dos recursos pesqueiros, com vistas à valorização da pesca e do pescador; o não estabelecimento de privilégios de um grupo sobre outros; a viabilidade operacional, principalmente em termos de fiscalização; a não inclusão de elementos regulamentadores de atribuição exclusiva do poder público (penalidades, multas, taxas, etc.); e a regulamentação através de portarias normativas complementares às portarias de normas gerais disciplinadoras do exercício da atividade pesqueira em cada bacia hidrográfica (IBAMA, 2003).
O acordo de pesca é um importante instrumento de ordenamento e regulamentação dos recursos pesqueiros, sendo útil ao processo de gestão participativa, uma vez que suas normas são consensuais (criadas pelas comunidades, com auxílio dos órgãos ambientais e de fiscalização) e apresentam uma intencionalidade de regular a atividade pesqueira num certo território, a fim de que o estoque destes recursos seja conservado. Para isso, geralmente, os acordos de pesca incluem vários instrumentos de controle da pesca, destacando-se: 
a) a proibição ou limitação do uso de aparelhos de pesca (malhadeira, lanterna de carbureto, tamanho de malhas, etc.), bem como, de outras práticas que possam degradar o meio ambiente;
b) proibição da pesca no período de “defeso” (paralisação temporária da pesca para a preservação de espécies, tendo como motivação a reprodução e/ou recrutamento, bem como, paralisações causadas por fenômenos naturais ou acidentais);
c) limites quantitativos para a captura de pescado, por pescaria;
d) proibição de pescas em determinadas áreas, reservando-as para fins de reprodução natural (criadouro natural);
e) definição de “zonas de pesca” (áreas de preservação total, áreas de preservação temporária e áreas de conservação).
Agricultura Familiar:
  • Nos últimos anos, a agricultura familiar brasileira vem ganhando reconhecimento social e destaque nas políticas públicas, sendo responsável pela produção de grande parte dos alimentos básicos, o que garante soberania e segurança alimentar. De 2002 a 2008, por exemplo, os recursos destinados para a agricultura familiar aumentaram cinco vezes, em forma de crédito no PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar). 
O modelo de agricultura familiar vem sendo apontado como o lócus para se atingir a sustentabilidade, pelas suas características de produção e produtividade, com inclusão social, geração de renda e produção de alimentos. Por isso, muitos autores reconhecem a importância da agricultura familiar para o desenvolvimento de um país, por acreditarem que as unidades familiares, além de atenderem melhor aos interesses sociais, desenvolvem suas escalas produtivas, assegurando a preservação ambiental.
  • Mas, o que vem a ser agricultura familiar? Embora não haja uma definição unânime, já que os diferentes setores sociais e suas representações constroem categorias científicas que servem a certas finalidades práticas, três atributos são básicos para que um sistema de produção agrícola possa ser considerado como de base familiar: gestão, propriedade e trabalho centrado em indivíduos que mantêm entre si laços de família. Porém, convém ressaltar que o universo da agricultura familiar não é homogêneo e não se integra ao mercado de uma forma única, dado as variações inerentes à produção e devido às suas características sociais, econômicas e culturais (VIEIRA, 2005).
No Brasil, as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendedores Familiares Rurais estão estabelecidas na Lei Federal Nº 11.326, de 24 de julho de 2006. Esta Lei, além de definir requisitos para o enquadramento das categorias “agricultor familiar” e “empreendedor familiar rural”, observa os princípios da descentralização; da sustentabilidade (ambiental, social e econômica) e da equidade na aplicação das políticas (respeitando os aspectos de gênero, geração e etnia). De acordo com a legislação mencionada, em Brasil (2006, p. 1):
Art. 3 – Para os efeitos desta Lei, considera-se agricultor familiar e empreendedor familiar rural aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos: I – não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais; II – utilize predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento; III – tenha renda familiar predominantemente originada de atividades econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento; IV – dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família. (BRASIL, 2006, p.1).
Percebe-se, portanto, que a definição de “agricultor familiar” e “empreendedor familiar rural” contida nesta legislação, leva em consideração três aspectos: tamanho da propriedade; predominância da mão-de-obra e da gestão familiar; desenvolvimento de atividade econômica vinculada ao meio rural. Na prática, a agricultura familiar está ligada a uma forma de produção em pequena escala, na maioria das vezes, voltada para a subsistência da própria família. 
  • Convém destacar que na sequência do artigo 3º, precisamente no parágrafo 2º, os benefícios desta lei são estendidos para outros trabalhadores rurais. Dentre estes trabalhadores, estão os pescadores que se enquadram, simultaneamente, aos requisitos previstos nos incisos I, II, III e IV, do caput deste mesmo artigo, e que desenvolvem atividade pesqueira de forma artesanal. 
Assim, considerando-se que a pesca é uma das atividades econômicas desenvolvidas pelo agricultor familiar e que o pescador para ser beneficiado por esta lei necessita enquadrar-se nos mesmos requisitos do agricultor familiar, podemos afirmar que este pescador é um agricultor familiar, desenvolvendo atividade pesqueira.
  • É notório que as atividades econômicas desenvolvidas por agricultores familiares estão baseadas em unidades de produção familiares e são realizadas, geralmente, em três ambientes: terra, floresta e água. Embora estas atividades variem de região para região, algumas são comuns, a exemplo: o desenvolvimento de práticas agrícolas (roça), cultivos de quintais, criação de animais, extrativismo vegetal (plantas medicinais, lenha, madeira, etc.) e extrativismo animal (pesca). 
Mas, normalmente, os agricultores familiares recorrem às mais diversas formas de atividades econômicas, em busca de geração de renda e sustento para suas famílias no lugar. Estudos em comunidades ribeirinhas da Amazônia, por exemplo, fazem referência ao desenvolvimento de atividades turísticas, bem como, à comercialização de produtos artesanais. Independentemente do tipo de atividade econômica desenvolvida, o que merece destaque é o fato de que os agricultores familiares conservam os recursos naturais, na medida em que utilizam estratégias de uso sustentável (baseadas num conhecimento acumulado transmitido de geração para geração) e conseguem assegurar seus sustentos e sobrevivência. 
  • Dessa forma, a variedade de atividades ajuda a manter uma harmonia entre modos de vida e o meio ambiente, uma vez que elas obedecem a um complexo calendário que respeita as potencialidades e o tempo de reprodutibilidade do sistema ecológico (MIGUEZ; FRAXE; WITKOSKI, 2007).

O “Acordo de pesca”, na ótica da agricultura familiar: um instrumento participativo de ordenamento e regulamentação dos recursos pesqueiros

Gestão Participativa dos recursos pesqueiros:
  • A gestão dos recursos naturais e do meio ambiente resulta de um conjunto de ações empreendida por numerosos atores privados e públicos, sendo que essas ações estão intimamente ligadas à natureza das atividades de produção ou de consumo desses atores (GODARD, 2002). No contexto da gestão, os recursos pesqueiros são considerados recursos naturais e do meio ambiente, estando ligados à atividade pesqueira, muito comum na agricultura familiar. 
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) vem executando, em várias regiões do Brasil, Projetos de Manejo de Recursos Naturais, inclusive, manejo participativo dos recursos pesqueiros. Neste sentido, um importante instrumento normativo que vem sendo utilizado pelo IBAMA e que merece reconhecimento público é a Lei Federal Nº 11.959, de 29 de junho de 2009, que dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca, além de regular as atividades pesqueiras. 
  • Vale lembrar que esta lei considera como recursos pesqueiros, em seu artigo 2º (inciso I): os animais e os vegetais hidróbios passíveis de exploração, estudo ou pesquisa pela pesca amadora, de subsistência, científica, comercial e pela aquicultura. O artigo 4º, desta mesma lei, trata da atividade pesqueira, que compreende todos os processos de pesca, explotação e exploração, cultivo, conservação, processamento, transporte, comercialização e pesquisa dos recursos pesqueiros (BRASIL, 2009).
Não parece conveniente que as tarefas de gestão de um domínio de recursos ou de um território sejam confiadas a um organismo único, mesmo que seja uma instituição especializada, pois esta dificilmente alcançará condições de assumir os diferentes sistemas de valores que animam a sociedade e os diferentes tipos de expressão de interesses da parte dos atores sociais. 
  • Além disso, deve prevalecer a busca de harmonização entre diferentes projetos técnicos baseados numa concepção ampla de harmonização social, onde o reconhecimento de uma pluralidade de enfoques constitui um elemento importante da estruturação. Mas, uma estrutura de gestão dos recursos naturais e do meio ambiente que se desdobre sobre vários níveis territoriais deve ampliar as zonas de responsabilidade conjunta, bem como promover a harmonia dos pontos de vista destes diversos níveis territoriais. 
Logo, no processo de criação de uma modalidade de gestão participativa, o território é um elemento que ganha força política, pois as regras de manejo, estabelecidas numa determinada territorialidade, só têm validade na área de domínio da comunidade comprometida com os acordos. Convém lembrar, ainda, que os recortes territoriais devem considerar a natureza específica de cada recurso (GODARD, 2002).
  • Os recursos naturais são concebidos pela economia clássica como um estoque ou como um fluxo de quantidades limitadas e distintas de unidades de bens econômicos passíveis de troca, apresentando a particularidade de não serem produzidos pelo homem. 
Porém, com a emergência dos problemas e dos riscos ambientais, este conceito ganha uma complexidade, a partir de quatro distinções (feita pela economia moderna, relacionando-as aos problemas de tomada de decisão ou aos mecanismos econômicos diferenciados): o caráter reprodutível ou não-reprodutível do recurso através da ação antrópica; o caráter renovável ou não-renovável, mediante processos naturais do recurso; o caráter esgotável ou não-esgotável do recurso, correspondendo à ideia de que o homem não pode explorar o recurso até o seu esgotamento; o caráter reciclável ou não-reciclável dos materiais, condicionando a massa de dejetos finais gerada pela atividade econômica. 
  • Assim, os recursos naturais não podem ser fixados de uma vez por todas, pois o conteúdo daquilo que denominamos recursos transforma-se historicamente e apresenta uma relação de dependência tanto com a evolução dos ambientes, quanto com a evolução das possibilidades técnicas, da natureza das necessidades e das condições econômicas (GODARD, 2002).
A partir dos anos oitenta, o Brasil e o mundo descortinam um novo cenário político em torno dos paradigmas de desenvolvimento sustentável e gestão pública, fortalecendo as perspectivas de equidade social, responsabilidade ecológica e participação cidadã. Neste contexto, experiências sustentáveis e democráticas começam a ser sistematizadas e a gestão participativa passa a ser um dos pilares essenciais para a realização efetiva de políticas públicas e de modelos de desenvolvimento (TAVARES, 2002). Entretanto, o que vem a ser, uma Gestão Participativa? Corroborando com o IBAMA (2007, p. 9):
É a administração na qual cada representante pode manifestar e negociar seus interesses de forma igualitária, com sentimento de responsabilidade e pertencimento a um grupo, participando efetivamente na construção em conjunto das decisões a serem tomadas para a definição de um destino. (IBAMA, 2007, p. 9).
Assim, enquanto modelo administrativo que viabiliza a intervenção da população nos processos decisórios, a gestão participativa pode ser materializada em um conjunto de processos sociais e de canais institucionalizados de participação, sendo reforçada por instrumentos político-sociais de participação cidadã (FREITAS, 2008). 
  • Mas, não podemos desconsiderar o fato de que a gestão participativa dos recursos naturais está sujeita a um conjunto de princípios: o embasamento na diversidade de saberes dos participantes; o embasamento no conceito de bem comum e na crença de que é possível obter consensos de interesse; a busca pela promoção das responsabilidades e dos direitos sobre o uso dos recursos naturais; a busca compensatória das igualdades de poder, promovendo um desenvolvimento socialmente justo; e a firmeza de uma postura ética, capaz de assumir a possibilidade real de gerenciamento com eficiência e de tratar as pessoas e seus interesses diversos com respeito e igualdade (IBAMA, 2007).
O governo brasileiro tem assumido um compromisso com a conservação ambiental e com o modelo de desenvolvimento sustentável, o que acaba dando origem às formas de gestão que possibilitam a participação dos usuários nos processos de tomada de decisão. 
  • Geralmente, as deliberações e/ou orientações coletivas dos usuários de recursos pesqueiros são normatizadas nos “acordos de pesca” e esta articulação entre Estado e Sociedade Civil Organizada acaba por permitir o manejo comunitário dos estoques pesqueiros, fazendo com que a pesca se torne uma atividade sustentável e permitindo a sobrevivência dos núcleos familiares e das comunidades. 
Em se tratando do processo de gestão participativa dos recursos pesqueiros é bom ter em mente que a exploração e a conservação destes recursos estão diretamente condicionadas ao processo de uso e ocupação das bacias de drenagem, por diversos atores sociais. Desta forma, entende-se que o desenvolvimento sustentável do setor pesqueiro reflete o desenvolvimento sustentável de todos os agentes de desenvolvimento econômico das bacias hidrográficas e que o processo de gestão destes recursos pesqueiros está inserido no contexto de gestão das águas. 
  • Outro ponto a se considerar diz respeito ao fato de que os recursos pesqueiros são bens de domínio público, uso comum e livre acesso, não podendo ser um recurso privatizado ou submetido ao controle de acesso (CERDEIRA; CAMARGO, 2008). 
Há uma diferença entre dominar e usufruir: uma família pode ter sua propriedade, todavia, não controlar todos os recursos existentes nela. O domínio está sobre a fonte dos recursos, mas seus fluxos e estoques fogem do controle. Convém lembrar que, embora grande parte dos bens comuns existentes nas comunidades sejam recursos naturais, existem também bens que resultam do trabalho coletivo ou da ação pública, e que são igualmente partilhados através de arranjos locais (RIBEIRO et al., 2005).
  • A Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei Federal Nº 9.433/1997) define a água como sendo um bem natural de domínio público, devendo ser atrelada a um modelo de gestão que além de considerar o seu uso múltiplo, deva ser descentralizado, podendo contar com a participação do poder público, dos usuários e das comunidades (BRASIL, 1997). 
O próprio contexto de governabilidade da água já valoriza o processo decisório baseado em princípios democráticos e na participação popular nas decisões, exigindo, portanto, um processo de reforma legal e institucional que permita a abertura à gestão ética e participativa. 
  • Ao considerar a importância das questões cognitivas na gestão participativa da água, Mariotti (2003)4 enfatiza o valor do diálogo, como uma metodologia de conversação que busca melhorar a comunicação entre os interlocutores, compartilhar experiências e gerar novas percepções e ideias. Enquanto a discussão e o debate geram acordos, sínteses e decisões, o diálogo busca a reflexão conjunta e a observação cooperativa da experiência, criando significados em conjunto.
Ao valorizar a gestão participativa não se devem ocultar seus desafios e limitações, principalmente quando ela não está acompanhada de um amadurecimento social para o processo de negociação. Com base nessa assertiva, Magalhães Júnior (2007) promove os seguintes questionamentos:
  • A sociedade está preparada para a participação?
  • A sociedade está bem informada para exercer de forma competente a participação?
  • Os arranjos e interesses locais e setoriais em nível das instâncias participativas condicionam as decisões?
  • A gestão participativa é um fator de inovação ou um bloqueio à transformação?
De fato, precisamos considerar que a sociedade brasileira apresenta uma diversidade de fatores que acabam por determinar diferentes graus de interesse, iniciativas, dinamismo e esforços de conscientização, podendo romper com o processo de mobilização. Além disso, não podemos desconsiderar que o acesso à informação adequada torna-se condicionante da gestão participativa e que há uma necessidade de democratização do conhecimento, já que a falta de homogeneidade, nesta área, acaba interferindo negativamente nas decisões. Corroborando com Vargas (2007), o processo de tomada de decisão está sujeito às diferenças apresentadas pelos atores sociais, quais sejam: diferenças no nível de conhecimento e de informação (desnível); diferenças de recursos e poder (assimetria); diferenças nos aspectos culturais (concepções).

Agricultura familiar: 
Gestão participativa dos recursos pesqueiros e acordo de pesca: uma integração multifuncional
  • No processo de inovação, o desenvolvimento de qualquer atividade requer mecanismos de integração dos atores sociais envolvidos. Os estudos mais recentes apontam para a importância da integração multifuncional para o nível operacional da gestão dos recursos naturais, uma vez que a complexidade ambiental e a turbulência acabam interferindo nas diferentes etapas do projeto desenvolvimentista. 
Por outro lado, o discurso da complexidade ambiental e da turbulência pode ser utilizado como uma estratégia de defesa contra o modelo impactante de desenvolvimento tradicional e isto nos leva para a necessidade de potencializar um desenvolvimento sustentável. Nesta ótica, a integração multifuncional passa a ser adequada para inúmeras atividades, dentre elas, as atividades ligadas à agricultura familiar.
  • Em geral, a abordagem de integração multifuncional é defendida sob a vertente das diferenças socioambientais, considerando o fato de que estas diferenças formam barreiras para a própria integração, além de provocarem conflitos de interesses que podem comprometer o andamento de um determinado projeto de desenvolvimento. Mas, a percepção positiva da integração multifuncional está direcionada para sua capacidade de promover a disseminação das informações. É o aumento do fluxo de informações entre os atores sociais, que contribui para o processo decisório conjunto (ONOYAMA, 2006).
A integração multifuncional consiste num conjunto de relações intersetoriais que seja capaz de compartilhar informações e envolver as diferentes funções em ações conjuntas, com entendimento mútuo, visão comum, compartilhamento de recursos e alcance de metas coletivas, definidas pelo grupo. 
  • No caso da gestão dos recursos naturais, a integração multifuncional é necessária, pois ela integra o Estado e a Sociedade Civil Organizada, promovendo o ordenamento e a regulamentação, sobretudo, daqueles recursos considerados bens de domínio público ou de uso comum. 
A integração multifuncional exige um modelo de gestão participativa, que também é multifuncional. Hoje, a gestão multifuncional constitui um apoio à promoção de atividades que, associadas a um recurso de uso coletivo, sejam capazes de contribuir para a sustentabilidade territorial (ONOYAMA, 2006).
  • A expressão ‘multifuncionalidade’ surge, no Brasil, (Rio de Janeiro/1992) durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, exatamente no contexto analítico das alternativas de reconhecimento e de valorização do caráter multifuncional da agricultura, bem como, dos dispositivos públicos ou coletivos capazes de assegurar, ao mesmo tempo, a sustentabilidade das funções produtivas, ambientais e sociais. 
Para tanto, bem antes, Laurent (1999)5 já havia definido a multifuncionalidade da agricultura, como o conjunto de suas contribuições para um desenvolvimento econômico e social considerado na sua globalidade. Na prática, esta ideia de multifuncionalidade ganha um reconhecimento social caracterizado pelo interesse público ou geral de funções sociais, ambientais, econômicas ou culturais, associadas à atividade agropecuária e passa a compreender a agricultura e os espaços rurais, incorporando um novo discurso operacional – o de desenvolvimento sustentável ou de agricultura sustentável (SABOURIN, 2008).
  • O Brasil já dispõe de diversas práticas de manejo coletivo de recursos comuns ou públicos, asseguradas pelas políticas públicas alternativas de multifuncionalidade. Essas práticas permitem assegurar, ao mesmo tempo, tanto funções de produção agropecuária, quanto funções de interesse coletivo, nos âmbitos sociais, ambientais e culturais. 
Para Sabourin (2008), existem duas grandes categorias destas práticas que ele chama de “dispositivos coletivos”: os sistemas de manejo de recursos naturais comuns ou coletivos (terras, florestas, pastagens, água, biodiversidade, ou a combinação de vários desses recursos num determinado território) e os sistemas locais de acesso ou de manejo de recursos ou bens públicos (informações, inovação, dos saberes e saber-fazer). 
  • Entretanto, a preocupação com a segurança alimentar e com o apoio à produção tem incentivado as comunidades camponesas e rurais a resistirem à função meramente mercantil da produção agropecuária, passando a lutar pela institucionalização de políticas públicas (reconhecimento público de dispositivos alternativos multifuncionais, geralmente, coletivos e não-mercantis). Logo, como afirma Godard (2002), as políticas públicas ficam entre o fogo cruzado da exigência de eficácia e dos conflitos de legitimidade. Isto porque a questão da legitimidade não se reduz à existência e ao conteúdo de um corpo de textos legislativos e regulamentadores, que os Estados devem colocar em ação. 
De um modo geral, as matrizes de justificação da legitimidade estão entre a realidade da natureza biofísica e as “representações da natureza”, o que torna o objeto de ação pública como incerto ou fortemente controvertido. Ademais, a legitimidade dos interesses associados à proteção da natureza pode acabar ferindo outros interesses ancorados no tecido social.
  • Nesse contexto, agricultura familiar, gestão participativa e acordo de pesca constituem uma relação de integração multifuncional, na medida em que essa relação mútua gera um compartilhamento de informações e envolve as diferentes funções em ações conjuntas. 
Neste processo relacional, há um entendimento mútuo, uma visão comum de compartilhamento de recursos e, principalmente, a definição (pelo grupo) de metas coletivas a serem alcançadas. Na prática, estas ações proporcionam meios que fortalecem os sistemas de manejo de recursos pesqueiros e as comunidades, além de aprimorar o processo de gestão participativa (CERDEIRA; CAMARGO, 2008). 
  • Embora o acordo de pesca seja um documento regulamentado através de Portaria Normativa Complementar do IBAMA e publicado no Diário Oficial da União, ele é elaborado pelo grupo (de forma participativa) e possibilita o ordenamento e a regulamentação dos recursos pesqueiros, considerando as estratégias de organização das comunidades locais. 
Como Raseira; Ruffino e Câmara (2006, p. 35) observam: “aumento da renda familiar, fortalecimento das organizações das colônias e maior participação dos usuários nos processos de tomada de decisões são alguns dos impactos positivos das ações de manejo participativo dos recursos pesqueiros reguladas pelo acordo de pesca”.

Considerações Finais:
  • As atividades econômicas desenvolvidas por agricultores familiares estão baseadas em unidades de produção familiares, sendo realizadas em diferentes ambientes, dentre outros, nas águas (como é o caso da atividade pesqueira). 
É preciso considerar que de acordo com a Política Nacional de Recursos Hídricos – PNRH e o Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos – SNGRH, a água é um bem de domínio público e sua gestão deve ocorrer de forma descentralizada, contando com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades. Neste caso, o uso da água não pode ser apropriado por uma só pessoa (física ou jurídica) e os recursos pesqueiros estão inseridos no mesmo contexto.
  • Os acordos de pesca são normas criadas, de forma participativa, num processo que envolve o Poder Público e a Sociedade Civil, principalmente, as comunidades e os órgãos ambientais e de fiscalização. Mas, estas normas devem considerar o conjunto de critérios básicos estabelecidos pelo IBAMA, em sua Resolução Nº 29/2002, merecendo destaque: a representação dos interesses da coletividade; a manutenção da exploração sustentável dos recursos pesqueiros; as condições de operacionalidade; e a regulamentação final destas normas, por meio da publicação de Portarias do IBAMA, ou de Órgãos Estaduais do Meio Ambiente.
Enfim, os acordos de pesca contribuem com o ordenamento e a regulamentação dos recursos pesqueiros, em comunidades de agricultura familiar, na medida em que suas normas e ações obedecem aos critérios básicos mencionados no parágrafo anterior, além de incluírem outros instrumentos de controle da atividade pesqueira, a saber: a proibição ou limitação do uso de aparelhos de pesca; a proibição da pesca no período de “defeso”; o limite quantitativo de pescado que se pode capturar por pescaria; a criação de reservas para servir de criadouro natural; e a definição de zonas de pesca.
  • Estudos apontam o acordo de pesca como um mecanismo positivo de gestão participativa, pois ele é capaz de promover a sustentabilidade local em suas diversas dimensões, bem como, as mudanças significativas em relação à organização das comunidades e às formas de condução dos processos de conflitos. 
Muito utilizado em Colônias de Pescadores, o acordo de pesca além de enquadrar-se no contexto da gestão participativa dos recursos naturais, pode ser considerado um instrumento normativo, de interesse público, cujo funcionamento favorece uma política de multifuncionalidade. É um objeto de investigação favorito, para os estudos de casos.

O “Acordo de pesca”, na ótica da agricultura familiar: um instrumento participativo de ordenamento e regulamentação dos recursos pesqueiros