quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Saúde, trabalho e ambiente no meio rural

Saúde, trabalho e ambiente no meio rural brasileiro

  • Situações determinadas no âmbito das relações entre saúde, trabalho e ambiente são fortemente influenciadas pelo nível de desenvolvimento de uma nação. 
À medida que um país avança em uma escala de desenvolvimento econômico e social, a dimensão local dos problemas de saúde e ambiente originados nos processos produtivos é superada, tornando mais evidentes situações de ordem regional e global, como os acidentes de trabalho, os acidentes industriais ampliados, as contaminações transfronteiriças e a exposição dos grupos populacionais humanos a contaminantes químicos, entre outros.
  • O Brasil é um país em desenvolvimento e, como tal, convive com situações-problema intermediárias entre o padrão “desenvolvido” (próprios dos países da União Européia e dos Estados Unidos, entre outros) e o “não-desenvolvido” (próprio dos países com desenvolvimento tardio, como alguns do Leste Europeu e da Ásia e grande parte do continente africano. 
Assim, ao mesmo tempo em que ainda enfrenta graves problemas de ordem local (saneamento, qualidade da água para consumo e a prevalência de doenças infecto-parasitárias), passa a lidar com situações-problema características de países mais desenvolvidos, como aumento na incidência de doenças crônico-degenerativas, aumento dos casos de acidentes de trabalho, contaminações/acidentes químicos ampliados, etc.. 
  • Tal fato coloca a necessidade de se considerar os problemas de saúde e ambiente enfrentados pela população do campo dentro do processo de desenvolvimento do país, sobretudo no que diz respeito às formas de organização do trabalho rural. Antes de qualquer outra questão, torna-se necessário, aqui, definir o que se entende por rural.
No Brasil, o termo rural é mais frequentemente utilizado em contraposição a urbano. 
  • Nessa visão, segundo o IBGE, “são classificadas como área urbanizada aquela legalmente definida como urbana caracterizada por construções, arruamentos e intensa ocupação humana; as áreas afetadas por transformações decorrentes do desenvolvimento urbano; e aquelas reservadas à expansão urbana”. Isso coloca o rural como tudo aquilo externo ao perímetro urbano, o que, na visão de Grabois, faz com que esse espaço seja “definido a partir de carências e não de suas próprias características”.
Para Kageyama, a discussão sobre a definição de rural é praticamente inesgotável, mas parece haver um certo consenso sobre os seguintes pontos: 
a) rural não é sinônimo de e nem tem exclusividade sobre o agrícola;
b) o rural é multissetorial (pluriatividade) e multifuncional (funções produtiva, ambiental, ecológica, social);
c) as áreas rurais têm densidade populacional relativamente baixa (o que pode mesmo constituir sua própria definição legal);
d) não há um isolamento absoluto entre os espaços rurais e as áreas urbanas. 
Assim, para fins desse trabalho, considera-se rural todo espaço não urbanizado e de baixa densidade populacional, onde se realizam atividades econômicas diversas, as quais têm importante função na organização dos grupos populacionais. Esta definição se aproxima da acima apresentada, sem se contrapor a do IBGE, configurando-se a mais adequada para o trabalho que aqui se apresenta.
  • Segundo dados do último Censo Agropecuário, existem cerca de 16,4 milhões de pessoas ocupadas em estabelecimentos rurais, correspondendo a aproximadamente 50% da população residente em áreas rurais (31,3 milhões de pessoas, segundo a PNAD). 
Tanto a população quanto o número de estabelecimentos localizados em áreas rurais têm decrescido no país desde 1985, confirmando uma tendência migratória em direção aos conglomerados urbanos e áreas periurbanas.
  • Ainda de acordo com dados apresentados no Censo Agropecuário de 200610 e também na PNAD, a população residente nas áreas rurais do país vem decrescendo desde o ano de 1970, data do primeiro Censo Agropecuário. 
Em 1970, eram aproximadamente 41 milhões de residentes em áreas rurais, número que no ano de 1980 já caía para pouco mais de 37 milhões e, em 2006, chegou a 31,3 milhões de pessoas. Nesse mesmo período, o número de pessoas ocupadas no meio rural mostra dois momentos distintos: 
a) o primeiro, entre 1970 e 1985, com um aumento da mão de obra ocupada em áreas rurais de 17,6 milhões de trabalhadores para 23,4 milhões;
b) no segundo momento, entre 1985 e 2006, ocorre uma inversão nessa tendência, com o número de pessoas ocupadas no meio rural caindo para aproximadamente 18 milhões em 1985 e 16,4 milhões em 2006.
Apesar dessa tendência de queda, tanto no número de habitantes quanto de trabalhadores no meio rural, o país registrou, no mesmo período (1970-2006), um crescente aumento da produtividade agropecuária (tradicionalmente associada às áreas rurais), fruto da otimização e da mecanização dos processos produtivos nessas áreas.
  • As mudanças do paradigma produtivo rural, ocorridas nos últimos anos, configuram uma situação em que, apesar de concentrar metade da força de trabalho mundial, observa-se um número cada vez menor de trabalhadores, alocados em atividades agropecuárias, submetidos a uma gama cada vez maior de riscos à sua saúde. O presente artigo discute as implicações desse fenômeno sobre a saúde e o ambiente no meio rural brasileiro. 
Apesar de, na prática, ser impossível dissociar o peso das dimensões saúde, trabalho e ambiente, adota-se aqui, para fins de organização de idéias, uma discussão específica sobre os principais problemas encontrados em cada um das dimensões e, ao final, discute-se as principais implicações para o campo da Saúde Coletiva no país. 
  • Configura-se como uma revisão sobre o tema, baseada na análise da literatura de referência presente em bases de dados nacionais (Scielo, IBGE, Ministérios da Saúde e da Agricultura) e internacionais (Lilacs, Pubmed e FAO), além de documentos produzidos por instituições ligadas à assistência ao homem do campo (Emater, Pesagro e Embrapa).
Com este artigo, não se pretende tecer uma discussão aprofundada sobre cada uma das dimensões apontadas e seus impactos sobre a sociedade rural brasileira; pretende-se, apenas, lançar luz sobre alguns dados relevantes referentes às atividades econômicas predominantes no meio rural brasileiro e suas relações com a saúde da população, trabalhadora ou não, e dos ambientes correlatos.

A dimensão do trabalho: 
No meio rural brasileiro:
  • O agronegócio é, hoje, o maior setor exportador brasileiro, representando 42% das exportações de nosso país, de acordo com dados do Ministério da Agricultura. É o fiel da balança comercial e a garantia de seu superávit. Ainda segundo essa fonte, o agronegócio representa 33% do PIB brasileiro e encerra 37% dos empregos.
Nos últimos anos, observa-se, em grande parte do meio rural brasileiro, uma mudança do paradigma produtivo tradicional – baseado na agricultura familiar – para a agroindústria de exportação, sobretudo aquela baseada em monoculturas latifundiárias (soja, milho, algodão, etc.). 
  • Esta mudança, fortemente influenciada pela política neoliberal adotada no país desde a década de noventa, tem como mote principal o aumento da produtividade agrícola suportado pelo implemento de novas tecnologias de produção, em especial de agentes químicos utilizados tanto para o controle e o combate a pragas quanto para o estímulo do crescimento de plantas e frutos.
Um dos principais problemas relacionados a estas mudanças no paradigma produtivo rural é a migração, fenômeno que pode ser considerado, em nosso país, como re-emergente, dada às novas dinâmicas migratórias observadas nos últimos vinte anos, principalmente no que diz respeito a grandes cadeias produtivas de monoculturas, como a soja, o milho e a cana-de-açúcar.
  • Há cerca de vinte anos, um intenso fluxo migratório foi registrado partindo da Região Sul do país em direção aos estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. 
Na busca por terras mais baratas, um grande número de agricultores e pecuaristas deixaram suas terras natais no Sul em direção à Região Centro-Oeste do país, onde intensificaram o cultivo de gado (principalmente no Mato Grosso do Sul) e de grandes monoculturas, como o milho, o algodão e a soja (principalmente no Mato Grosso). Dados da PNAD mostram que a Região Centro-Oeste foi o segundo principal destino dos nascidos na Região Sul que resolveram migrar nos últimos vinte anos. 
  • Segundo essa mesma fonte, 5% de toda a população residente na Região Centro-Oeste é natural de estados da Região Sul do país. Também esta região (Centro-Oeste) foi a segunda mais escolhida pelos naturais da Região Nordeste (que correspondem a 12,3% dos residentes da Região Centro-Oeste) e a primeira escolha dos naturais da Região Norte (2,2% dos residentes da região) que, neste período, migraram de seus estados de origem.
Grande parte dos migrantes das regiões Sul e Nordeste instalados na Região Centro-Oeste esteve ocupada, nos últimos anos, com os cultivos da soja, milho e algodão.
  • Aqueles que já possuíam terras em seus estados de origem e que, com a venda, conseguiram investir em novas propriedades nessa região, acabaram por conseguir uma inserção mais vantajosa no processo produtivo, e hoje formam a elite rural de seus estados e municípios. 
Já aqueles que migraram com a promessa de empregos nos sítios e fazendas de outrem, hoje vivem os reflexos de uma inserção marginal nessa cadeia produtiva, cada vez mais mecanizada e restritiva a novos postos de trabalho. Como principal desdobramento desse fenômeno, observa-se a formação de um excedente de mão de obra sem destinação conhecida. Segundo Benjamin e colaboradores,
  • A desestruturação da policultura tradicional, que propiciava uma ocupação estável da terra, foi feita sem alteração da estrutura de propriedade. Em seu lugar, não surgiu uma moderna agricultura baseada na pequena produção, que também seria capaz de assegurar a ocupação estável da terra. 
Como consequência, reduziram-se as oportunidades de emprego, por causa da crescente mecanização, e aumentou a urbanização da própria população empregada na agropecuária, com a expulsão dos trabalhadores residentes no campo. Em outra seção, discutiremos alguns dos impactos desse fluxos migratórios sobre a saúde da população rural, em particular no país.
  • No que tange à agricultura familiar, também se observa, nos últimos anos, uma mudança nos processos produtivos, principalmente associada à intensificação da produtividade, à diminuição do pessoal ocupado nessas atividades e à pluriatividade (coexistência de diversas atividades produtivas em uma mesma propriedade).
Segundo o IBGE, 73% do pessoal ocupado no meio rural brasileiro têm laços de parentesco com o proprietário da terra. Este dado aponta para o fato da maioria da atividade econômica no meio rural brasileiro ser do tipo “familiar”.
  • Ademais, a diversidade de atores e segmentos abrangidos por esta classificação (agricultura familiar), como destaca Schneider, é outro fator complicador, quando da opção de uso desse termo para discutir um conjunto de atividades que têm espaço no meio rural brasileiro: 
Diante dos desafios que o sindicalismo rural enfrentava nesta época – impactos da abertura comercial, falta de crédito agrícola e queda dos preços dos principais produtos agrícolas de exportação –, a incorporação e a afirmação da noção de agricultura familiar mostrou-se capaz de oferecer guarida a um conjunto de categorias sociais, como, por exemplo, assentados, arrendatários, parceiros, integrados à agroindústrias, entre outros, que não mais podiam ser confortavelmente identificados com as noções de pequenos produtores ou, simplesmente, de trabalhadores rurais. Por essa razão, coloca-se aqui a necessidade de definir o que se entende, nesse artigo, por agricultura familiar. 
  • Para fins da discussão que se segue, considera-se, no presente artigo, agricultura familiar aquela que remonta à lógica campesina de produção, com a participação quase que exclusiva da mão-de-obra familiar, com opção clara pela policultura e que tenha base em pequenas e médias propriedades.
O impacto da mecanização e do implemento de insumos químicos na agricultura familiar, nos últimos quarenta anos, produziram não apenas um incremento da produção agrícola nacional, mas também possibilitaram a emergência de novas formas de organização do trabalho na agricultura familiar, como as parcerias e os arrendamentos (meeiros, etc.) o que, segundo Alessi e Navarro, leva a um novo momento dessa agricultura familiar, marcado pela “extensão da jornada de trabalho, intensificação do seu ritmo, pagamento por produção, decréscimo real do valor dos salários e descumprimento de direitos trabalhistas”.
  • Também leva a um aumento significativo da exposição desses grupos populacionais a diversos agentes químicos perigosos, como os agrotóxicos.
Nenhum outro grupo é mais vulnerável aos efeitos nocivos dos agrotóxicos que os trabalhadores da chamada “agricultura familiar”. Isso se dá em razão de diversos determinantes, dentre os quais: 
  • A baixa assistência técnica recebida por estes indivíduos para o manuseio correto desses agentes químicos, agravada pelo fato de, em algumas localidades, essa assistência ser prestada exclusivamente por técnicos ligados ao comércio de agrotóxicos; 
  • As práticas exploratórias de venda desses insumos químicos, que ignoram qualquer alternativa de controle de pragas menos agressivas à saúde e ao ambiente;
  • A não-clareza de informações contidas nos rótulos e bulas de agrotóxicos, associada aos baixos índices de escolaridade observados nesse grupo; 
  • A pressão recebida para a entrega de um produto aparentemente perfeito, mesmo que, para isso, desconsiderem-se os períodos de carência e as indicações de dosagem durante as pulverizações; 
  • A pressão exercida pelos proprietários de terra sobre os parceiros (meeiros, arrendatários, etc.) para que se reproduza o uso desses insumos nas áreas arrendadas, mesmo que essa pressão não venha acompanhada da devida orientação técnica; e 
  • A carência observada nos mecanismos de controle e fiscalização sobre a comercialização, venda e descarte desses agentes químicos por pequenos produtores.

Saúde, trabalho e ambiente no meio rural brasileiro

A dimensão da saúde no meio rural brasileiro:
  • As mudanças no mundo do trabalho e nas dinâmicas migratórias no meio rural brasileiro, anteriormente sumarizadas, têm impactos diretos e indiretos na saúde dos diversos grupos populacionais ali residentes.
Diversos são os determinantes desses impactos, que vão desde grandes macro-determinantes, de ordem estrutural, até outros mais específicos, pontuais, intermediários nesse processo de determinação social.
  • As grandes forças motrizes (ou macro-determinantes) do processo saúde-doença no meio rural brasileiro, hoje, estão fortemente associadas a políticas governamentais de incentivo a determinadas cadeias produtivas, como as da cana-de-açúcar e da soja.
O incentivo à produção de etanol é, hoje, uma das principais políticas (nacional e internacional) do governo brasileiro, cuja origem remonta a um programa governamental de 1975 (o PróÁlcool). Segundo Masiero e Lopes, Os esforços de investigação de novas formas de energia alternativa têm sido orientados pelo aumento da demanda por biocombustíveis que se caracteriza por:
a) aumentos contínuos do preço do petróleo que hoje é a principal fonte primária de energia e devido a sua crescente utilização tem causado o encarecimento das matrizes energéticas de várias nações dependentes da commodity, desencadeando sérios desequilíbrios em suas balanças comerciais;
b) benefícios que a expansão da utilização dos biocombustíveis pode trazer para o setor agrícola por meio da implantação de projetos específicos para fins energéticos com o objetivo de promover o desenvolvimento regional sustentável; e,
c) redução das emissões de gás carbônico que além do benefício em si poderá ser fonte de ganhos no mercado de carbono uma vez que a parcela de gases não emitidos por um país poderá ser comercializada na forma de créditos a outro participante interessado em não reduzir suas emissões.
Focaliza-se aqui o segundo aspecto. Tendo como força motriz o incentivo agrícola para fins energéticos, aumenta-se a produção de cana de açúcar no país, processo produtivo que encerra uma série de técnicas e práticas nocivas à saúde dos trabalhadores envolvidos. Além do trabalho em ambiente externo, comum a quase toda atividade agrícola, o processo de trabalho na colheita da cana compreende: 
a) deslocamento precário de trabalhadores em caçambas de caminhões (“pau-de-arara”);
b) queimada da cana em etapa imediatamente anterior ao corte;
c) movimentos repetitivos com enxadas e foices para o corte da cana, associados à postura inadequada (posição arqueada e frequentes subidas e descidas);
d) exposição a animais peçonhentos localizados entre as varas de cana;
e) transporte de grande quantidade de varas de cana entre o local de corte e o caminhão que as conduzirá aos engenhos, podendo chegar a quatorze toneladas em um único dia.
Segundo dados do IBGE, entre 1989 e 1996, com a retomada da produção de álcool para uso, em larga escala, como combustível, a produção de cana de açúcar no país aumentou de 171 milhões de toneladas (plantados em dois milhões de hectares) para 248 milhões de toneladas (plantados em quase três milhões de hectares) somente nos estados do Paraná, São Paulo, Santa Catarina e Distrito Federal. 
  • Dados mais recentes desse instituto mostram que, no ano de 2007, a produção nacional de cana-de-açúcar alcançou aproximadamente 550 milhões de toneladas em pouco mais de sete milhões de hectares plantados, com estimativa de crescimento de 17% para o ano seguinte (dados não computados até o momento).
Segundo Oliveira, no ano de 2007, havia aproximadamente 585 mil trabalhadores ocupados nas lavouras de cana-de-açúcar em todo o país, sendo 340 mil no eixo Centro-Sul (São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Paraná) e 245 mil no eixo Norte-Nordeste (do litoral Norte da Bahia ao Maranhão).
  • Ainda segundo a autora, de 1992 a 2007, houve uma queda de 24% no número de pessoas ocupadas nessa atividade. No mesmo período, segundo dados do IBGE, houve um aumento de aproximadamente 40% da área cultivada (de 4,2 para sete milhões de hectares) com essa lavoura no país e um aumento de quase 50% na produção (de 271 para aproximadamente 550  milhões de toneladas). Estes dados, quando contrastados, podem indicar uma situação de vulnerabilidade para esses agricultores (menos agricultores produzindo mais em condições mais precárias de trabalho), mesmo considerando o aumento da tecnificação do processo produtivo rural. 
Tal situação vem sendo corroborada por outros estudos sobre o tema, assim como por alguns indicadores, como os dados do Ministério da Previdência Social, os quais mostram que, no ano de 2006, o número de acidentes de trabalho no processo produtivo da cana de açúcar ultrapassou o da construção civil, setor que, historicamente, liderava no país o ranking desse tipo de acidente.
  • No que tange à exposição de agricultores e consumidores aos agrotóxicos utilizados na cadeia da soja, ainda é cedo para conhecer o seu real impacto, principalmente quanto ao glifosato. Isto se dá em função da baixa toxicidade aguda desse agente químico (glifosato) e das incertezas sobre os seus mecanismos de ação no organismo humano.
Diversos estudos, entretanto, vêm apontando para os possíveis efeitos tóxicos da exposição crônica ao glifosato, um herbicida não-seletivo, a problemas de saúde, como dermatites, desregulação do ciclo celular e, principalmente, disrupção endócrina.
  • Disruptores endócrinos são agentes que, ao serem absorvidos pelo organismo, mimetizam ou bloqueiam hormônios e alteram as funções orgânicas normais (fenômeno conhecido por disrupção). Estas alterações (ou disrupções) podem ser de diversas naturezas, tais como o estímulo à produção de hormônios, a alteração nos níveis normais dessas substâncias  e alterações no mecanismo de transporte desses hormônios entre outros. Alguns autores como
Benachour e colaboradores têm afirmado que os efeitos tóxicos do glifosato, incluindo a disrupção endócrina, podem estar sendo subestimados ao não se levar em conta sua interação com adjuvantes presentes nas formulações (bem como com outros princípios ativos usados concomitantemente a estes), levando a graves erros na elaboração de políticas regulatórias.
  • Com relação às implicações dos fluxos migratórios de trabalhadores rurais sobre a saúde humana, diversos autores vêm destacando os efeitos desse fluxos sobre a incidência de doenças sexualmente transmissíveis, em particular HIV/ aids, e outras doenças transmissíveis, como a tuberculose, difteria e malária.
Monteiro e colaboradores, em recente estudo sobre a distribuição da leishmaniose no país, reforçam a importância dos novos fluxos migratórios associados ao trabalho rural, principalmente nas cadeias da soja e algodão e da cana de açúcar, como um dos principais determinantes da prevalência dessa doença no sul do país. Outros autores, como Silva e colaboradores e Rossini, destacam os impactos da atividade canavieira sobre a condição de saúde dos trabalhadores rurais, incluindo: 
a) os casos de intoxicações por agrotóxicos;
b) o desgaste físico decorrente do corte e do transporte da cana, que leva os trabalhadores a situações extremas como a desidratação e a fadiga, além de problemas ergonômicos e musculares (esforço repetitivo no corte);
c) os problemas respiratórios associados às queimadas, necessárias na etapa pré-colheita; e
d) o aumento dos indicadores de violência nas regiões que abrigam esses trabalhadores migrantes no período da colheita da cana.
Assim, a questão da migração e seus impactos sobre a saúde se configuram como alguns dos principais desafios para a saúde do homem do campo, devido à complexidade de fatores envolvidos e o desafio territorial que se configura em nosso país.

A dimensão ambiental no meio rural brasileiro:
  • Segundo dados dos últimos censos agropecuários realizados no país (entre 1970 e 2006 foram realizados seis), o tamanho da área destinada a lavouras no país mais que dobrou nos últimos quarenta anos, passando de aproximadamente 34 milhões de hectares em 1970 para 76 milhões em 2006. 
Isto representa a incorporação de áreas naturais (florestas, cerrados, campos, etc.) para esse fim, uma vez que a área destinada a pastagens também aumentou (de pouco mais que 154 milhões de hectares em 1970 para 172 milhões em 2006).
  • Estes dados contrariam o discurso vigente entre os defensores do grande agronegócio exportador, que afirma que o aumento das áreas destinadas ao plantio dessas monoculturas é representado pela incorporação de áreas anteriormente destinadas à pecuária, e não de áreas naturais.
Outros dados, como o do programa de pesquisa “Agricultura e Meio Ambiente”, desvelam essa situação e apontam para um dos principais problemas ambientais hoje observados no meio rural brasileiro, representado pela incorporação de áreas naturais à cadeia das grandes monoculturas e a perda da biodiversidade a estes processo relacionada: O aumento da área plantada com soja no Brasil resultou na incorporação de terras virgens à produção, bem como na substituição de outros cultivos por soja. 
  • Além disso, práticas inadequadas de cultivo intensivo provocaram séria degradação ambiental, como a erosão e a perda de solos férteis, o assoreamento e a poluição de importantes cursos d’água, o desaparecimento de nascentes e a perda de biodiversidade.
Dados recentes da publicação “Indicadores de Desenvolvimento Sustentável” mostram que áreas de cerrado e da Floresta Amazônica continuam a ser derrubadas para dar lugar à produção de soja, contribuindo para a degradação ambiental e a diminuição da biodiversidade no país.
  • E tal fato tende a se agravar desde a publicação, em 14 de outubro de 2004, da Medida Provisória 223/04, que liberou, no país, o plantio de sementes de soja geneticamente modificadas. Isto é particularmente preocupante (e, aqui, sem levar em consideração todos os potenciais riscos relacionados com a disseminação, na natureza, de plantas geneticamente modificadas), uma vez que a principal semente de soja geneticamente modificada que se tem disponível no mercado tem, por característica principal, ser resistente a um tipo específico de herbicida, o glifosato.
Esta característica acarretou, nos Estados Unidos, um aumento da quantidade de herbicida utilizado por área plantada de soja, conforme dados do Departamento de Agricultura daquele país, num percentual de aproximadamente 250% em apenas três anos (de 1996, ano em que a Soja RR começou a ser plantada naquele país, a 1998). 
  • Tal fato foi responsável por, nos dias de hoje, a Soja RR ocupar aproximadamente 90% de toda a área destinada ao plantio de soja nos Estados Unidos e o glifosato corresponder a 94% do consumo de todos os agrotóxicos utilizados neste cultivo.
De acordo com o programa de pesquisa “Agricultura e Meio Ambiente”, patrocinado pela WWF, somente a cadeia da soja no Brasil movimenta aproximadamente US$ 32 bilhões anualmente e emprega cerca de 5,4 milhões de pessoas.
  • A década de 1990-2000 foi a década da expansão da soja e, por esta razão, destaca-se aqui o papel dessa cadeia produtiva sobre o ambiente (em particular sobre o cerrado brasileiro, região que concentra a maior parte das plantações de soja no país). O Brasil é, hoje, o maior produtor mundial de soja do mundo, cuja produção é, basicamente, destinada à exportação. 
A opção do governo brasileiro pela produção de soja, como uma commodity, tem trazido uma série de agravos ao ambiente, não apenas aqueles relacionados ao desmatamento e à destruição do cerrado brasileiro, onde se concentra a maioria das plantações de soja no país, mas também ao uso extensivo de agrotóxicos, sobretudo herbicidas.
  • No país, já se pode observar os efeitos do uso de soja geneticamente modificada sobre o consumo de agrotóxicos. Em reportagem publicada pelo jornal Valor Econômico de 23/04/200751, foram apresentados dados do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) que mostram um aumento de 95% do consumo de glifosato no país, de 2000 a 2005, acompanhado de um aumento de 71% das áreas ocupados com a soja (no mesmo período). 
Estes dados derrubam dois dos principais argumentos dos grupos defensores do plantio da soja transgênica: 
a) o primeiro, que a soja transgênica diminuiria o uso de agrotóxicos; e
b) o segundo, que com o aumento na produtividade, potencialmente provocado pela soja transgênica, se diminuiria o uso de novas áreas para o plantio da soja.
Outras Considerações:

Os dados apresentados e discutidos no presente artigo colocam um problema intrigante para a Saúde Coletiva brasileira: que tipo de esforços empreender quando todas as escolhas possíveis são inadequadas? Explica-se:
  • Se os trabalhadores rurais optarem pelo uso de insumos químicos perigosos, como os agrotóxicos, em suas lavouras, podem impulsionar a produtividade e permanecer, mesmo que marginalmente, em uma posição competitiva no mercado global; se não, estão fora do trabalho. Entretanto, ao optar pelo uso de agrotóxicos (entre outros insumos químicos), e assim manter a viabilidade econômica de seus produtos, aumentam sua exposição aos efeitos nocivos destes agentes químicos;
  • Estes mesmos trabalhadores, ao tentarem o uso de técnicas alternativas de controle de pragas, projetadas para reduzir a carga química em suas colheitas, introduzem um elemento do risco, visto que boa parte destas práticas não é bem calibrada ao solo e às circunstâncias climáticas locais;
  • A alternativa de migrar em direção aos centros urbanos é opção válida; entretanto, a experiência lhes diz que as incertezas são grandes e as sustentações sociais são poucas. 
É importante realçar, ainda, que com exceção de alguns grandes exportadores, a agricultura próxima dos grandes centros é de pequeno porte e uma atividade eminentemente familiar, permitindo muito pouco espaço de inserção desse contingente de trabalhadores que deixa o trabalho nas grandes monoculturas.
  • O excedente de mão de obra nas grandes monoculturas é tal que, se um trabalhador empregado desejar evitar sua exposição aos agrotóxicos, isto significa que está fora de trabalho e que já há alguma outra pessoa imediatamente atrás dele na fila, a espera para ingressar naquele mesmo trabalho perigoso.
Hoje, os principais determinantes do quadro das relações entre saúde, trabalho e ambiente parecem estar relacionados às grandes forças motrizes representadas pelas políticas governamentais de incentivo a determinadas cadeias produtivas.
  • A busca pela garantia do superávit nas trocas comerciais acaba por determinar o estímulo à produção de grandes monoculturas exportadoras, como a soja, o milho e o algodão.
Por outro lado, a necessidade de garantir, no mercado internacional, a supremacia tecnológica sobre a produção de álcool combustível acaba por determinar o aumento da produção e das áreas disponíveis à cultura de cana de açúcar em diversas regiões do país.
  • A principal consequência desse processo, como visto no presente artigo, é o predomínio, no país, das grandes cadeias de monoculturas exportadoras e do uso de áreas naturais para esses cultivos, levando à concentração de terra e expondo uma gama de trabalhadores a inúmeros riscos, caracterizando um importante quadro de vulnerabilidade social e ambiental no meio rural brasileiro.
Além disso, como foi possível observar, a contaminação química associada aos processos produtivos se caracteriza como um dos mais complexos problemas de saúde pública e ambiental no país, em razão da diversidade de determinantes envolvidos, da dimensão territorial do país e da deficiência nas estruturas de vigilância correlatas.
  • Assim, os macro-determinantes aqui apresentados e discutidos acabam por configurar o retrato da saúde de um contingente expressivo de trabalhadores e não trabalhadores, habitantes do Brasil Rural que, cotidianamente, enfrentam uma série de desafios para a garantia de uma qualidade de vida e de trabalho digna. A opção econômica não deve sobrepujar à primazia da garantia dessas condições dignas de trabalho e saúde. 
Esse é o verdadeiro desafio colocado para o campo da Saúde Pública, e que deve ser encarado por todos – profissionais da saúde, gestores, técnicos e pesquisadores – no cotidiano de suas atividades.

Saúde, trabalho e ambiente no meio rural brasileiro