sábado, 16 de abril de 2016

A ideia de corpo: Suas Relações com a natureza e os Assuntos Humanos

A ideia de corpo: Suas Relações com a natureza e os Assuntos Humanos

Antônio Ribeiro de Almeida Júnior

  • Muito longe de serem consensuais, as concepções correntes sobre os corpos dos seres vivos e sobre o corpo humano são extremamente variadas e têm origens muito antigas. Podemos encontrar gérmens dessas concepções na Filosofia, na Sociologia, nas Artes, nas Religiões, na Psicologia, na Psicanálise, no conhecimento médico, nas tradições. 
Não há cultura que não manifeste idéias próprias sobre o corpo. Essa multiplicidade também ocorre nas proposições atuais da cultura ocidental. Esse texto é uma tentativa de alertar para a necessidade de discutir apropriadamente as concepções de corpo que orientam nossas reflexões sobre a natureza e sobre os assuntos humanos. 
  • Veremos que o modo de conceber os corpos dos seres vivos e o corpo humano é extremamente importante, repercutindo profundamente nas proposições teóricas sobre meio ambiente, ecologia, economia etc. Devido à amplitude e à complexidade do tema, esse texto tem a pretensão de ser apenas uma abordagem inicial, tópica, que não busca de forma alguma esgotar o assunto. 
Nessa análise inicial da idéia de corpo, considerarei apenas duas grandes correntes de pensamento: 
  • O marxismo e 
  • A Biologia contemporânea. 
Tentarei mostrar que a idéia de corpo foi e é socialmente constituída, interferindo em quase todos os domínios do pensamento. 
  • Nas obras de Marx, a concepção de corpo ocupa um lugar central, orientando outras concepções que são muito mais discutidas, como é o caso do conceito de trabalho. 
A concepção de corpo de Marx aparece mesclada nas concepções de técnica, de trabalho, das relações com a natureza, das possibilidades de desenvolvimento das sociedades humanas. Veremos que, para Marx, o corpo dos seres vivos pode ser dividido em duas partes: 
  • Uma parte orgânica e 
  • Uma parte inorgânica. 
Essas duas partes são mantidas numa relação constante e não podem ser pensadas separadamente. Apesar das críticas importantes e procedentes que o marxismo recebeu nas últimas décadas, a idéia de corpo não parece ter recebido muita atenção. 
  • Pelo estudo da concepção de corpo em Marx, podemos perceber o quanto essa pode ser importante na elaboração do pensamento econômico e social. 
Aparentemente mais distante da preocupação dos economistas, veremos que a concepção de corpo predominante na Biologia atual é reconhecida pela maioria dos autores como o resultado de um longo desenvolvimento da análise reducionista ou mecanicista. 
  • A importância da concepção biológica e reducionista do corpo está em sua difusão no meio social pela escola, clínica, meios de comunicação em massa, instituições estatais e privadas de saúde, agricultura, meio ambiente, influenciando inclusive o pensamento econômico. 
Em geral, as proposições sobre saúde, meio ambiente, agricultura, economia etc., não discutem diretamente a concepção de corpo pelas quais se orientam. Por exemplo, quando um técnico qualquer fala sobre as necessidades do melhoramento genético de plantas na agricultura, ele não se sente obrigado a esclarecer a concepção de planta e, portanto, de um tipo particular de corpo, que está empregando. 
  • Ou ainda, quando um economista faz afirmações sobre o mercado de trabalho, ele freqüentemente esquece que o trabalho é o resultado das ações corporais dos trabalhadores. As afirmações ocorrem como se houvesse algum consenso sobre o que é a planta ou o corpo em geral, levando a um desprezo pela questão. 
Entretanto, tal consenso está longe de existir. Por exemplo, dentro da Biologia a alternativa reducionista é contestada pelas correntes organicistas 1 e a concepção de corpo formulada por Marx apresenta diversos problemas como veremos. 

A Concepção de Corpo em Marx:
  • Nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx trata de forma explícita a questão do corpo que mais tarde será abordada de modo indireto. 
No entanto, para compreender as afirmações sobre o corpo do Marx da maturidade, o melhor é começar pelos Manuscritos. Vejamos um fragmento: 
A natureza é o corpo inorgânico do homem, a saber, a natureza na medida em que ela mesma não é corpo humano. O homem vive da natureza, significa: a natureza é seu corpo, com o qual tem de permanecer em constante processo para não morrer. (Marx, in Fernandes, 1983:155) 2 
No trecho acima, podemos perceber que Marx concebe a natureza como parte do corpo do homem, como a parte inorgânica 3 desse corpo, como a parte não humana desse corpo. Além dessa parte inorgânica, o corpo do homem teria também uma parte orgânica, humana. Essa parte orgânica seria aproximadamente aquilo que chamamos de corpo. 
  • A fronteira entre essas duas partes é difícil de delimitar, porque não se sabe exatamente em qual momento algo que é parte do corpo inorgânico passa a compor o corpo orgânico. Mesmo sem tratá-las separadamente e sem definir claramente a localização das fronteiras, Marx estabelece distinções entre essas partes. 
No fragmento acima, também podemos perceber a importância da discussão da concepção de corpo para o pensamento econômico e ecológico porque nela aparecem pontos imprescindíveis da relação do homem com a natureza. Os corpos dos outros seres vivos também são compostos por uma parte inorgânica e outra orgânica. 
  • Cada ser vivo, pelas suas capacidades de interagir com o ambiente, teria um corpo inorgânico próprio que corresponderia a uma pequena parcela da natureza. Ao contrário do corpo inorgânico do homem, que seria potencialmente ilimitado, o corpo inorgânico dos demais seres vivos teria limites bastante precisos e praticamente imutáveis. 
Esse corpo duplo aparece nas reflexões de Marx sobre cada ser individualmente e também nas reflexões sobre as coletividades como as espécies, as organizações, as comunidades, as sociedades. Uma sociedade teria, além de seu meio interno (corpo orgânico), um meio externo (corpo inorgânico). Historicamente, afirma Marx, o corpo inorgânico do homem também esteve limitado a um fragmento da natureza e nunca correspondeu à natureza como um todo. 
  • Mas essa limitação do corpo inorgânico do homem deveu-se à incapacidade dos modos de produção históricos de realizar plenamente as capacidades humanas de relacionamento com a natureza. O pré-capitalismo e o capitalismo teriam limitado as capacidades de relacionamento do homem com a natureza. 
No pré-capitalismo, a limitação do corpo inorgânico do homem seria devida à pequena capacidade das forças produtivas em transformar a natureza. A vinculação entre a parte inorgânica e a orgânica do corpo do homem estaria assegurada pela relação do homem com a terra. 
  • A terra seria o corpo inorgânico do homem, seria a extensão da sua subjetividade. Mas o homem estava submetido às forças naturais cujas leis ele desconhecia. A relação com o corpo inorgânico era mediada pelo pertencimento à comunidade, pela condição dada pelo nascimento. A negação do homem estaria na incapacidade da plena expressão de suas potencialidades. 
No capitalismo, a relação com o corpo inorgânico é mediada pela mercadoria. Grande parte do corpo inorgânico está na forma de mercadoria. A relação necessária entre o corpo orgânico e o corpo inorgânico estaria submetida ao constrangimento da relação mercantil. 
  • Em outras palavras, a mercadoria funciona como uma separação de fato do homem de seu corpo inorgânico. Grande parte das necessidades corporais só podem ser satisfeitas pela troca mercantil. Por exemplo, a fome pode ser provocada tanto pela escassez de alimentos quanto pela impossibilidade de comprá-los em meio à abundância de alimentos no mercado. 
Essa separação entre o corpo orgânico e inorgânico transformaria todo o desenvolvimento das forças produtivas em um desenvolvimento negativo. O desenvolvimento capitalista seria a negação do homem e a realização da relação mercantil. Marx considera ao menos duas possibilidades de relacionamento com os objetos que compõem o corpo inorgânico. 
  • A primeira delas é considerar os objetos externos como extensão do corpo orgânico. Por isto, Marx considera, por exemplo, que as ferramentas são extensões do braço do trabalhador no artesanato. Nesse caso, os objetos aparecem como parte da subjetividade dos homens. A segunda possibilidade seria considerar os objetos externos como hostis. 
Quando Marx trata dos meios de trabalho no capitalismo, é o trabalhador que se torna acessório, extensão da máquina. Os objetos não podem ser assimilados pela subjetividade porque aparecem como propriedade privada de outro homem. Mesmo quando se trata do proprietário dos objetos, do capitalista, a assimilação pela subjetividade é problemática porque se trata então de um corpo inorgânico gigantesco, hipertrofiado. 
  • De acordo com Marx, a subjetividade do capitalista seria assimilada pelos objetos, transformando-o em personificação do capital. As fronteiras materiais entre o corpo orgânico e inorgânico estão correlacionadas com as fronteiras subjetivas. 
Por exemplo, quando pensamos na auto-imagem que os trabalhadores fazem de si como fontes das forças que atuam na produção, percebemos que as reivindicações dos trabalhadores estão correlacionadas a essa auto-imagem. 
  • É conhecida a fórmula de Marx que afirma que as forças coletivas criadas pela cooperação são apropriadas pelo capital gratuitamente, porque os trabalhadores não vêem essas forças coletivas como suas, como geradas pela atividade de seus corpos. 
Essas forças podem então aparecer como resultado da atividade do capital. Para Marx, o socialismo seria capaz de realizar a plena expressão das potencialidades do homem. Isto significa que, enquanto espécie, o homem se tornaria capaz de estender indefinidamente seu corpo inorgânico. 
  • O corpo inorgânico da espécie humana passaria potencialmente a ser a natureza como um todo, e não apenas parte dela. O socialismo representaria a possibilidade de desenvolvimento ilimitado do corpo inorgânico da espécie humana. O problema das fronteiras reaparece com essa proposição de Marx de expansão ilimitada da dimensão do corpo do homem (parte orgânica + parte inorgânica). 
Para Marx, cada ser vivo possuiria um corpo com duas fronteiras. Como dissemos, haveria uma fronteira distinguindo a parte orgânica da parte inorgânica do corpo e, além dessa, uma outra fronteira entre o corpo (orgânico + inorgânico) e a natureza restante. A relação com o corpo inorgânico é dada não apenas pelas trocas materiais com o meio, mas também pelos sentidos. 
  • No caso do homem, a parte biológica dos sentidos humanos é apenas o ponto de partida da constituição cultural dos sentidos. As condições materiais e ideológicas em que se dá a educação dessa base biológica levarão aos sentidos humanos. 
A audição humana não é a simples capacidade dos ouvidos, dos nervos, cérebro etc., ela é o aprendizado que leva alguém a apreciar uma sinfonia enquanto outro aprecia cantos rituais. No caso dos demais seres vivos, os sentidos são definidos no processo de ontogênese. Em outras palavras, os sentidos estarão em conformidade com o ambiente. 
  • Os sentidos humanos são extremamente plásticos, podendo atingir, através do adestramento cultural, um estado de desfuncionalização biológica. Por exemplo, não podemos atribuir uma função biológica clara ao fato de alguém possuir uma grande sensibilidade para a música clássica. Fora do corpo orgânico e do corpo inorgânico estariam todos os elementos da natureza com os quais o ser vivo não manteria nenhuma relação material e que estivessem fora do alcance dos sentidos. 
Essa parte da natureza para a qual o ser vivo não possui nenhuma abertura é tanto maior quanto menos universal é esse ser vivo. Como vimos, o mesmo raciocínio realizado para o corpo de cada ser vivo e de cada homem pode ser aplicado para as coletividades de seres vivos, as espécies, ou para coletividades humanas, como os grupos de trabalhadores vinculados a uma fábrica, comunidades, sociedades. 
  • Da mesma forma que um ser vivo tem um corpo duplo, cada sociedade teria um meio interno e um meio externo. A relação com o corpo inorgânico de uma sociedade expressa a capacidade coletiva de relacionamento dos homens com a natureza. Os gráficos que acompanham esse texto mostram as posições das fronteiras para cada uma das situações que discutimos acima. 
Convenções: N = Natureza CO = Corpo Orgânico CI = Corpo Inorgânico A concepção de Marx recebeu críticas importantes nas últimas décadas. Entre elas encontra-se a crítica à esperança de um desenvolvimento ilimitado. 
  • Hoje parece claro que tal desenvolvimento ilimitado tornou-se um dos objetivos centrais do próprio capitalismo. Hoje, porém, sabemos também que a pretensão de um desenvolvimento ilimitado, da expansão ilimitada do corpo inorgânico da espécie humana, é uma fantasia irrealizável. 
No melhor dos casos, o desenvolvimento pode ser dirigido por uma sociedade autônoma, constituída por cidadãos autônomos. Tal desenvolvimento pensaria o tempo como circular, em completa repetição ou em uma lenta ascensão; de qualquer forma, o horizonte temporal considerado seria bem mais longo do que atualmente. 
  • Hoje, suspeitamos que a biosfera não será capaz de suportar um desenvolvimento rápido e em padrões perdulários. 

O corpo humano é a maior obra da natureza. Sua capacidade 
de adaptação é esplêndida

A Concepção Reducionista do Corpo:
  • A concepção de corpo formulada pela Biologia pode parecer distante do interesse dos economistas. Contudo, devemos ter em mente que essa visão de corpo interfere no comportamento dos agentes econômicos. 
Ela orienta a ação dos empresários que devem lidar com seres vivos, como é o caso na agricultura e na pecuária, na indústria de alimentos, na indústria farmacêutica, nas empresas de saúde etc. Ela é também utilizada em metáforas que comparam as empresas aos organismos vivos. 
  • Sabemos também que o corpo é um elemento imprescindível do marketing contemporâneo porque sua imagem faz vender. Essa imagem é cultural e, no Ocidente, a Biologia contribui muito para sua formação. São freqüentes nas campanhas publicitárias de produtos alimentícios ou farmacêuticos as referências a determinados componentes químicos, por exemplo, rico em vitaminas . 
Isto reflete uma visão físico-química do corpo cuja origem encontra-se na Biologia. Como campo autônomo do conhecimento 4 , a Biologia é relativamente recente; no entanto, a atual concepção de corpo que nela encontramos tem origens distantes no tempo. Esta investigação começa relatando rapidamente essas origens. 
  • A breve retomada da história do conceito de corpo na Biologia tem a intenção de apontar alguns elementos básicos para a reflexão sobre o corpo. Como dissemos, a história da concepção de corpo é marcada por uma atitude reducionista/mecanicista amplamente reconhecida 5. 
Deixando de lado as fases mais antigas dessa atitude reducionista, vejamos algumas transformações importantes no conhecimento sobre o ser vivo que ocorreram durante os últimos séculos. Na segunda metade do século XVII, muitos pesquisadores fizeram observações microscópicas. Entre eles, podemos destacar alguns exemplos como Anton Van Leenwenhoek, Malpighi, Robert Hook. 
  • Este último é lembrado pelas descrições microscópicas detalhadas que realizou sobre pedaços de cortiça. Nessas descrições, Hook chamou de células as estruturas que encontrou. Leenwenhoek descreveu infusórios 6 , espermatozóides, glóbulos vermelhos nucleados de peixes e, até mesmo, bactérias cujas proporções são muito reduzidas. 
Malpighi também realizou pesquisas citológicas. Esses primeiros observadores constataram a existência de um mundo microscópico, mas foram incapazes de elaborar uma teoria coerente sobre o mundo que eles descobriram e, ainda menos, uma concepção de corpo derivada das observações microscópicas. 
  • Somente no século XIX, com a melhoria das técnicas de microscopia e a aparição dos primeiros laboratórios modernos, Schwann e Schleiden formularam uma teoria celular 7 , estabelecendo a célula como a primeira unidade viva do ser vivo. Essa teoria celular foi uma das bases para a formulação das concepções atuais da Biologia. 
Atualmente, num dado patamar de abstração, pensa-se o corpo como constituído por uma célula autônoma ou por várias células funcionando de modo integrado. E, como veremos, a célula é pensada como uma máquina química comandada pelo DNA. No século XIX, apareceu também a teoria darwinista da evolução que vai bem mais longe que a simples classificação de espécies proposta por Lineu e seus seguidores. 
  • A teoria de Darwin postula a variabilidade dos indivíduos dentro das espécies e a seleção natural exercida sobre os próprios indivíduos ou sobre sua capacidade de produzir descendentes. Ainda que haja um forte contraste entre a posição de Darwin e o transformismo de Lamarck, Darwin não recusa de modo categórico a possibilidade da transmissão aos descendentes dos caracteres adquiridos. 
Os corpos dos indivíduos são variáveis dentro de cada espécie e as características que favorecem o sucesso reprodutivo desse corpo são selecionadas pela ação do ambiente. Ainda no século XIX, em aparente contradição com o postulado da variabilidade de Darwin, Gregor Mendel provou que os caracteres dos indivíduos são herdados de seus antepassados. 
  • As leis de Mendel mostram uma transmissão imutável dos caracteres hereditários. No início, essas duas teorias pareciam ser absolutamente incompatíveis e uma formulação conjunta e coerente apareceu somente no século XX como resultado dos trabalhos de Weismann, 
De Vries e Morgan, entre outros. Para Mendel, as características corporais são completamente herdadas dos antepassados, enquanto para Darwin existe uma visível variação da forma corporal dos indivíduos de uma espécie 8 . 
  • Dentro do domínio da Biologia, a teoria celular, a evolução darwinista e a genética mendeliana parecem ser algumas das principais contribuições do século XIX, mas elas não foram as únicas importantes. Muitas outras descobertas de imensa repercussão foram realizadas pelos pesquisadores do século XIX. 
Muitas das moléculas de grande importância na manutenção dos organismos vivos foram isoladas e descritas durante o século XIX ou no início do século XX. A química orgânica tornou-se uma ferramenta essencial das pesquisas sobre os seres vivos nesse período. Para citar somente mais um exemplo das descobertas do século XIX, 
  • Pasteur fez contribuições decisivas, demonstrando a impossibilidade da geração espontânea, formulando novas idéias sobre assepsia, criando algumas vacinas. No caso de Pasteur, vemos um vínculo direto entre suas descobertas e a expansão de um conceito de corpo da Biologia em direção ao meio social que a cerca. 
Não somente pela proposição de novos hábitos de higiene, mas também pelo emprego de vacinas capazes de libertar os homens de doenças mortais. A imunidade frente a determinadas doenças passa a ser artificialmente adicionada ao corpo humano e de alguns animais. O sistema imunológico passou a ser pensado como fonte de uma identidade corporal própria a cada indivíduo, como capaz de distinguir entre algo que faz ou não parte de um organismo. 
  • As demonstrações de Pasteur sobre assepsia passaram a interferir nas atividades cotidianas dos seres humanos. As preocupações básicas com a sanidade dos alimentos e sua conservação, as práticas hospitalares, a higiene das residências e dos espaços públicos foram profundamente modificadas, devido às descobertas de Pasteur e de outros pesquisadores. As práticas corporais foram visivelmente alteradas pela difusão dessas descobertas. 
Grande parte das descobertas científicas importantes no campo da Biologia tiveram repercussões sobre as atitudes do cidadão comum e do técnico, estabeleceram novos hábitos, modificaram padrões psicológicos, instituíram novas verdades, novas regras morais. 
  • O exemplo dos anticoncepcionais que permitiram novos padrões de comportamento sexual é conhecido, mas não é nem o mais importante nem o mais radical. A Biologia atual estabeleceu-se pela fusão e refinamento dessas teorias do século XIX. 
Como exemplo disto, podemos citar a fusão entre a genética mendeliana e o evolucionismo darwinista, viabilizada pela separação entre soma e gérmen proposta por Wiesmann, pela idéia de mutação de De Vries, pelas pesquisas de Morgan com a Drosophila melanogaster etc. A partir do trabalho desses e de outros autores, o material genético passou a ser pensado como sendo muito estável, mas sofrendo micro perturbações de maneira aleatória. 
  • Tais perturbações são numerosas quando consideramos sua ocorrência em populações inteiras. Quando aparecem nos gametas, elas são transmissíveis aos descendentes e, assim, tornam possível uma seleção pelo ambiente das mutações favoráveis. Os avanços da Biologia não ignoraram os resultados obtidos em outros campos do conhecimento. 
A cibernética e a física nuclear fizeram parte do ambiente científico e técnico da década de 40. Portanto, não foi tão espantoso que o físico Erwin Schrödinger tenha sugerido 9 que a estrutura atômica do material genético fosse pensada como um cristal aperiódico portador de informações codificadas. Schrödinger sugeriu ainda que uma mutação genética seria causada por modificação de um pequeno número de átomos da estrutura do cromossomo. Uma informação genética estaria codificada em alguns átomos 10.
  • Ele utiliza uma comparação entre o material genético e o código morse. Tal comparação supõe a existência de automatismos moleculares de codificação e decodificação de informações. Determinados grupos de átomos poderiam conter informações precisas capazes de programar as estruturas e as atividades do ser vivo. Características visíveis dos seres vivos estariam associadas a uma seqüência de átomos na estrutura do DNA. 
A genética molecular aparecia claramente como alvo de pesquisa. Inspirados pelo livro de Schrödinger e pela comprovação da estrutura em hélice de algumas proteínas feita por Linus Pauling, poucos anos mais tarde, em 1953, os trabalhos de Watson e Crick revelaram a estrutura em dupla hélice do DNA. 
  • Um enorme campo de pesquisas para a genética molecular era aberto com as investigações dos automatismos moleculares envolvidos na síntese de proteínas. Mediante um conhecimento muito preciso da estrutura molecular do material genético, grande parte das questões levantadas pelos biólogos desde os trabalhos de Mendel e Darwin poderiam encontrar respostas muito satisfatórias. 
A estabilidade na produção do semelhante pelo semelhante, definida pelos trabalhos de Mendel, e a variabilidade entre os membros que compõem uma espécie constatada por Darwin ganhavam um fundamento molecular. 
  • Alguns anos mais tarde, descobriu-se que associadas a um açúcar (desoxirribose) e a um fosfato, as bases Adenina, Timina, Citosina e Guanina (ATCG) formavam um verdadeiro alfabeto de quatro letras que, combinadas três a três, eram capazes de formar 64 palavras. Cada uma dessas 64 palavras corresponde a um dos 20 aminoácidos 11. 
Por exemplo ATC, ATG, TTG ou AAA correspondem aos seguintes aminoácidos: Isoleucina, Metionina, Leucina e Lisina. Evidentemente, alguns aminoácidos são codificados por mais de uma seqüência de três bases, o que aumenta a estabilidade do material genético. O DNA passou a ser compreendido como uma verdadeira memória molecular da estrutura protéica dos seres vivos. 
  • A concepção cartesiana do ser vivo como máquina reaparece com toda sua força. Evidentemente, Descartes 12 não tinha à sua disposição os conhecimentos empregados atualmente, mas podemos estabelecer facilmente um parentesco entre essas concepções. 
Quando Descartes pensou os seres vivos como máquinas, ele se referiu aos mecanismos de relojoaria porque, em sua época, os relógios eram os exemplos mais perfeitos da habilidade humana na construção de máquinas. Os mecanismos moleculares empregados nas concepções atuais sobre o DNA e sua relação com o RNA e as proteínas são muitíssimo mais sofisticados e de um mundo invisível na prática, mas não deixam de ser mecanismos. 
  • Além do fracionamento do ser vivo no momento da análise, essa metáfora da máquina também é uma característica marcante da atitude reducionista. Por exemplo, analisando aspectos filosóficos da Biologia, Nagel afirma que: 
Em Biologia, podemos admitir que um mecanicista é alguém que acredita, como fez Jacques Loeb, que todo processo vivo pode ser inequivocamente explicado em termos físico-químicos , isto é, em termos das teorias e leis que são classificadas consensualmente como pertencendo à física e à química.
Entretanto, os mecanismos biológicos assim entendidos não devem ser empregados para negar que os corpos vivos têm organizações extremamente complexas. Ao contrário, a maioria dos biólogos que adotam esse ponto de vista enfatizam que as atividades dos corpos vivos não são explicáveis pela mera análise de suas composições físicas e químicas, se não consideramos suas estruturas ou organizações . Assim, a caracterização de Loeb de um corpo vivo como uma máquina química é um óbvio reconhecimento dessa organização (Nagel, 1961:430). 
Nagel pretende mostrar com isto que os mecanicistas atuais diferenciam-se bastante dos mecanicistas de outros períodos, mesmo que compartilhem com eles alguns pontos importantes quanto ao programa de pesquisas. 
  • A redução atual dos seres vivos a máquinas químicas utiliza-se de recursos e conhecimentos que não poderiam ser enquadrados dentro dos parâmetros cartesianos. Contudo, podemos pensar com razão que essas tentativas reducionistas sigam inspirações do projeto cartesiano de pesquisas. 
Os reducionistas parecem acreditar na possibilidade de uma explicação global do ser vivo, recorrendo a cada vez a um novo patamar de redução analítica. Quando os fenômenos celulares não podiam mais dar explicações satisfatórias para os fenômenos observados, recorreu-se aos organoides celulares, mais tarde às moléculas. 
  • Podemos perguntar se o último patamar de redução já foi atingido, ou se ainda devemos esperar novas reduções que transformem os componentes subatômicos do DNA e das outras moléculas nos elementos explicativos centrais das novas teorias. 
A maior parte dos economistas absorveu sem grandes críticas a concepção de corpo elaborada pelo reducionismo biológico. Esses economistas acabaram adotando uma postura teórica que separa o homem da natureza. A economia seria assim indiferente aos assuntos ambientais, desde que estes não representassem custos ou possibilidades de ganho para as empresas.
  • Uma crítica importante a essa postura reducionista aparece entre os biólogos atuais. Essa crítica afirma que, no caso dos sistemas abertos 13, deve-se considerar o todo como algo que não pode ser pensado como simples adição das partes. 
O todo seria algo indivisível, apresentando sinergias importantes que vão muito além das características das partes. Esse todo seria formado por subsistemas hierarquizados. Assim, as explicações físico-químicas, que correspondem aos níveis hierárquicos mais baixos, não poderiam dar conta dos fenômenos correspondentes ao todo orgânico. 
  • Essa crítica aparece com toda sua violência quando tratamos dos fenômenos ligados à ação, à subjetividade do ser vivo em relação ao mundo que o cerca. A sensibilidade do ser vivo em relação ao mundo interno e externo não pode dar conta dos fenômenos atômicos. 
Mesmo quando tratamos de um organismo unicelular, o número de átomos e de fenômenos físico-químicos que estão ligados a sua manutenção são de tal ordem que a sensibilidade a esses fenômenos e átomos seria caótica, sem nenhuma utilidade para o ser vivo. Por isso, os seres vivos formam imagens sobre o mundo. Imagens que resultam de inumeráveis fenômenos físico-químicos. 
  • Para se relacionar com o ambiente que o cerca, cada ser vivo deve ser capaz de formular um conjunto de imagens, compondo dessa forma um mundo que lhe é próprio e que corresponde apenas aproximadamente ao mundo no qual vivem seus semelhantes. Cada ser vivo tem seu mundo próprio, o que corresponde a uma subjetividade em relação ao mundo físico-químico. 
Além disso, o reducionismo também é criticado pela pretensão de domínio absoluto sobre a natureza. Mediante a análise de um ser vivo cada vez mais fragmentado, o reducionismo pretende obter instrumentos para um controle sobre a natureza cada vez mais eficaz. Nesse sentido, esse controle seria sempre crescente e não teria, por princípio, efeitos imprevisíveis. 
  • Essa tentativa de obter um domínio absoluto sobre a natureza é mais uma manifestação da herança cartesiana, pois, para Descartes, o homem deveria tornar-se senhor e possuidor da natureza . Aqui, encontramos uma similitude com a proposição de Marx de expansão ilimitada do corpo inorgânico da espécie humana pelo desenvolvimento econômico socialista
Referências Bibliográficas:

CASTORIADIS, C. (1992). As encruzilhadas do labirinto. Rio de Janeiro, Paz e Terra vol. III. 
CHALMEL, P. (1984). Biologie actuelle et philosophie thomiste. Paris, Téqui. 
JACOB, F. (1970). La logique du vivant. Paris, Gallimard. 
MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos . In: 
FERNANDES, Florestan (1983). Marx, Engels. São Paulo, Ática. (Coleção Grandes Cientistas Sociais.) 
NAGEL, E. (1961). The structure of science. Nova York, Harcourt, Brace. 
ROSNAY, J. (1988). L'aventure du vivant. Paris, Seuil. 
SCHRÖDINGER, E. (1986). Qu'est-ce que la vie? Paris, Seuil. 
TIBON-CORNILLOT, M. (1992). Les corps transfigurés. Paris, Seuil. 
______ (1993). Crise de la biologie, crise du droit: du code génétique à la biologisation des normes . Droits, nº 18. 
WATSON, J. D. (1968). The double helix. Nova York, The New American Library. 

A ideia de corpo: Suas Relações com a natureza e os Assuntos Humanos