terça-feira, 19 de abril de 2016

A Sociedade Global e a Questão Ambiental

A Sociedade Global e a Questão Ambiental

Maria Lúcia Azevedo Leonardi

  • A sociedade mundial, ou global, é uma categoria em formação. Ela abrange uma grande variedade de sociedades contemporâneas, a leste e a oeste, pobres e ricas, centrais e periféricas, desenvolvidas e subdesenvolvidas, dependentes e agregadas, o conceito que se quiser usar. 
Apesar das diferenças existentes entre essas sociedades quanto a seus níveis sociais, econômicos, políticos, tecnológicos, culturais, é possível distinguir nelas estruturas, relações e processos semelhantes. E mais, como as ciências sociais e humanas estão tentando entender essa nova realidade social, embora com dificuldades e tropeços, alguns estudiosos falam, entre os quais Milton Santos, de globalização como um novo paradigma de conhecimento sistemático da economia, da política, da ciência, da cultura, da informação e do espaço. 
  • Alguns traços da sociedade mundial ou global que está se forjando podem ser resumidos. Em todas as sociedades, das mais diversas, estão em curso movimentos em direção à transnacionalização das instituições, sejam econômicas, políticas, sociais, culturais, tecnológicas. 
Fala-se em um sistema mundo que, embora não sendo um conceito novo, adquire novos significados, como veremos depois. Segundo alguns cálculos de organismos internacionais, atualmente, um terço do total da atividade econômica mundial transcende a possibilidade de intervenção política de um só Estado. 
  • E, o que é mais: uma parte decisiva dessa atividade econômica transnacional está organizada de maneira que tampouco pode ser regulamentada mediante acordos interestaduais, mediatizados pela intervenção política. Essa autonomia da economia ante a política fundamenta-se, expressa-se por meio das organizações transnacionais consórcios transnacionais. 
A título de esclarecer o que estou dizendo, atualmente apenas um dos consórcios com mais volume de vendas em todo o mundo faz seus negócios no país de origem. O total dos recursos financeiros a curto prazo de que dispõem os consórcios multinacionais transcende a duas vezes o que dispõem todos os bancos emissores e demais autoridades monetárias juntas. 
  • A falta de capacidade de regulação política desses desequilíbrios manifesta-se na especulação monetária. Essa grande autonomia das empresas transnacionais não as impede, porém, que busquem subvenções do erário nacional para implantação daquelas tecnologias que lhes interessam e que também interessam ao Estado nacional. 
Exemplos disso são as indústrias armamentista, espacial e, também, a informática e a indústria nuclear. Assim, a transnacionalidade da organização dos consórcios (e estou falando, em especial, nos países avançados) leva a que uma mesma empresa possa ser alimentada simultaneamente por fundos fiscais dos mais diversos países. 
  • Contudo, como as políticas estatais não estão organizadas na escala transnacional, têm muito pouca influência na política do consórcio. O desenvolvimento tecnológico está, é claro, intimamente ligado a isso. 
Pois, como o setor transnacional possui acesso mundial às condições mais favoráveis da produção, qualquer controle interno da economia passa a depender das inovações tecnológicas e organizadoras do setor transnacional. 
  • Tampouco medidas internacionais são mais eficazes, pois não podem negar seu fundamental caráter estatal-nacional como um derivado da política exterior dos estados nacionais. É claro que as instituições transnacionais estão referidas a um território (e este é nacional pelo menos por ora); também as forças sindicais e as políticas são nacionais. 
Assim, o paradoxo é que o internacionalismo do movimento operário, tantas vezes invocado e pretendido, continua sendo uma ilusão ou utopia, mas o internacionalismo do capital é uma realidade. 
No entanto, essas contradições ou divergências entre interesses dos estados nacionais e dos consórcios internacionais não inibem as boas relações entre governos locais e organizações sociais locais com as empresas multinacionais e transnacionais. 
  • Outro traço da sociedade global, que em certas sociedades é mais visível do que em outras, é a ocidentalização do mundo como ocorreu, em escala menor, na colonização e no imperialismo. É claro que nesse processo de ocidentalização às vezes mais visível no campo cultural, como veremos a seguir há recriações locais, regionais que as diferenciam uma das outras. 
A desterritorialização e o declínio das metrópoles são outros componentes importantes da sociedade mundial contemporânea. Como afirma Octavio Ianni (1992:94): 
A desterritorialização manifesta-se tanto na esfera da economia, como na política e cultura. Todos os níveis da vida social, em alguma medida, são alcançados pelo deslocamento ou dissolução de fronteiras, raízes, centros decisórios, pontos de referência. 
As relações, processos e estruturas globais fazem com que tudo se movimente em relações conhecidas e desconhecidas, conexas e contraditórias . Esse processo mundial de desterritorialização tem a ver, também, com as exigências da razão instrumental. Afeta as concepções do espaço, tempo, lealdade a grupos, valores e teorias. 
  • Daí a importância que assumiram os estudos comparados, as análises do cotidiano, do micro . O esvaziamento das grandes cidades e metrópoles explica-se nesse contexto de desterritorialização. Elas deixaram de ser o centro de decisões econômicas, políticas e estratégicas. 
Não apenas inexiste um centro único de decisões, seja em nível local, nacional ou internacional que no Brasil corporifica-se em São Paulo, por exemplo como também a noção de centro alterou-se. É claro que São Paulo ainda aloja escritórios de empresas multinacionais e corporações transnacionais, de partidos políticos, órgãos administrativos e científicos e todos eles interferem nas decisões econômico-financeiras, políticas, administrativas e outras. 
  • Mas existem outros espaços de decisão espalhados pelo mundo. O espaço da globalização é outro. As Ciências Sociais ainda estão inventando um novo conceito. Poder-se-ia falar de rede de espaços decisórios? Ou de umas poucas cidades globais? 
Ou de um centro de decisão que nem pertencesse a algum país, como Hong Kong? Há exemplos desses três tipos e haverá outros de espaços de decisão. Por exemplo, alguns estudiosos falam de cidades globais como sendo, apenas, Londres, Nova York e Tóquio. 
  • E que elas teriam outras funções, como por exemplo, em Tóquio a função triangulação. Tóquio não é uma cidade produtora de bens. Ela é consumidora de bens e produtos. Mas é uma produtora de serviços (como toda cidade grande e metrópole tende a ser hoje). 
Ora, como produtora de serviços ela passa a ser o centro de grandes corporações como a Toyota, que se localiza na cidade de Nagóia mas está se deslocando (como atividade produtiva) para Tailândia, Coréia do Sul e EUA. Um exemplo de rede de espaços decisórios é uma corporação transnacional que tenha escritórios em Nova York, Milão, Tóquio, Pequim, Bombaim, São Paulo, Santiago e Cidade do México. Onde estaria o centro de decisão? 
  • No computador central? Haveria uma única central de computação ou várias? Onde estaria o centro? A desterritorialização que acompanha a transnacionalização, como vimos, não é só econômica, mas social, cultural, política; também influencia o subjetivo dos indivíduos. 
Ela acentua o sentimento de solidão de indivíduos, grupos, classes, famílias e outros segmentos sociais, embora a solidão possa se mascarar sob a ilusão otimista de que a emergência da sociedade global abre perspectivas novas e criativas para as pessoas pensarem, trabalharem, imaginarem, viverem. Isso ocorre, sem dúvida. 
  • Mas seu contraponto também é verdadeiro, uma vez que a internacionalização da mídia impõe padrões, valores, sentimentos, deixando pouco espaço para criações individuais e para a autoconsciência. O enfraquecimento dos Estados-nações é outro traço característico e muito importante do processo de globalização. 
Esse enfraquecimento tem a ver com o fortalecimento das empresas, corporações transnacionais, entidades multinacionais, não só empresas mas também organismos como FMI, Banco Mundial, GATT, ONU, UNESCO, UNICEF, OTAN, NAFTA, MERCOSUL e outros. Esse fato remete à categoria nação. Conhecemos um pouco das nações que vêm do passado e, freqüentemente, confundem-se com o território. 
  • Ou com o Estado. Mas hoje, o que é Nação? Será um fenômeno ainda obscuro, como fala Edgar Morin? Ou será uma cidade a Nação? Ou será um rearranjo, em terras estranhas, de novas formas sociais, reconstituindo antigas lealdades ou atributos herdados? 
Na medida em que se verifica a globalização e emerge o desenvolvimento da sociedade global, a sociedade nacional muda de figura como diz Octavio Ianni (1993: 67) tanto empírica como metodologicamente, tanto histórica como teoricamente. 
  • Quando se reconhece que a sociedade global, em suas configurações e em seus movimentos, envolve outra realidade histórica, geográfica, antropológica, política, econômica, social, cultural, religiosa, linguística, então temos que perguntar como essa nova realidade influi, e se expressa, na sociedade nacional. É como se a sociedade global fosse um todo abrangente, complexo e contraditório, sub-sumindo formal ou realmente a sociedade nacional. 
É claro que a sociedade global não se constitui autônoma, independente, alheia à nacional, que continua a existir, com seus dilemas, símbolos, povo, território. Mas mudam os seus significados. E essa alteração será uma revolução? também interfere decisivamente no objeto, metodologia, teoria das Ciências Sociais e algumas das Ciências Humanas (como a Geografia, Economia, História). 
  • Pois a sociedade nacional, freqüentemente simbolizada no seu Estado-nação (e isso é outro problema), tem sido estudada como totalidade significativa, capaz de autonomia, soberania e, às vezes, até mesmo de hegemonia. Mas, hoje, verifica-se o que já se tinha esquecido, que a sociedade nacional é histórica. A Nação forma-se e desenvolve-se como um processo social. Portanto, não é imutável, é histórica. 
Os exemplos são muitos, tomemos apenas um: a Tchecoslováquia sempre foi um país, uma nação rica em histórias e cultura, em poucas semanas perdeu até o nome! Outro exemplo? Algumas nações parecem ter surgido como produtos de simples acidentes históricos ou expedientes políticos e, por isso, são entidades artificiais! 
  • Lembremo-nos da África, dos países da antiga União Soviética e mesmo da América Latina. Na Alemanha, que deverá ser a próxima potência mundial, cuja identidade nacional sempre foi fraca, e tardia sua constituição como Estado-nação, os políticos falam abertamente na insuficiência do Estado nacional e que é chegado o momento de substituir o estado nacional por organizações transnacionais, políticas e estatais, democraticamente legitimadas, que possam atuar com eficácia (Lafontaine, 1993:9). 
Propõem realizar a utopia do Estado-mundial. O mundo não é mais apenas, ou principalmente , afirma Octavio Ianni (1992:96), uma coleção de estados nacionais, mais ou menos centrais e periféricos, arcaicos e modernos, agrários e industrializados, coloniais e associados, dependentes e independentes, ocidentais e orientais, reais e imaginários. 
  • As nações transformaram-se em espaços, territórios ou elos da sociedade global . Isso também é um desafio para as Ciências Sociais. Farei, agora, um breve parênteses para algumas colocações conceituais, a fim de precisar um pouco mais os conceitos que estou usando. Alguns autores diferem internacionalização de globalização e outros não o fazem. 
Penso em internacionalização como o crescimento geográfico das atividades econômicas que ultrapassam os limites nacionais. Já globalização é um fenômeno novo: é a mais avançada e complexa forma de internacionalização, que implica um grau de interação funcional entre atividades econômicas dispersas internacionalmente (P. Dicken, apud Renato Ortiz, l994). 
  • Mas, ao falar de globalização estamos usando um instrumental teórico construído no final do século XIX e que já não se ajusta bem à nova realidade. Assim, conceitos de classe, indivíduo, Estado, desenvolvimento, pátria, mundo são noções forjadas no interior de uma entidade nodal que é a Nação, mas cuja crise se agudiza em face das mudanças atuais. É preciso que as Ciências Sociais revejam conceitos epistemológicos como nação, mundo, sociedade global, cultura mundial e outros. 
A formação da nação deu-se num determinado contexto histórico, com certas especificações econômicas (capitalismo), políticas (ascensão da burguesia) e sociais. Naquele momento de formação da nação, a diversidade das etnias foi integrada ou dissolvida no interior da nação. 
  • Já os Estados poli étnicos surgidos neste século não puderam dispor do tempo histórico necessário para realizar sua integração nacional e eles se desintegraram quando a coerção que os mantinha unidos se desfez. A Iugoslávia é um exemplo. É notável que, hoje, o enraizamento ou o re-enraizamento étnico e religioso cristaliza-se sobre e além do Estado nação. 
Essa situação, chamada por alguns de balcanização generalizada, ocorre justamente no momento em que a era planetária requer a associação de Estados nações para o encaminhamento de questões fundamentais para a sobrevivência do planeta, como a questão ambiental. 
  • A proliferação de novas nações e o antagonismo entre elas e entre religiões, etnias, povos têm recrudescido e dificultado o encaminhamento de problemas por demais complexos para as jovens nações resolverem sozinhas. Esse é um dos dilemas. 
Outro é que muitos dos problemas, desafios, limites da sociedade global são comuns a toda a humanidade, como as catástrofes ecológicas, a emissão de gás carbono, o efeito estufa, a desertificação de áreas férteis, o estoque de reservas não-renováveis de energia e outros. 
  • Todos eles exigem soluções globais. Outras características da globalização: a revolução informática e o poder que possuem os detentores dessas conquistas eletrônicas; a energia nuclear, tornada a mais potente arma de guerra; a formação do sistema financeiro mundial, dominado por países como EUA, Japão, Alemanha e entidades como CEE, Grupo dos 7, FMI, BIRD etc. 
Nas áreas cultural e política, importantes características da globalização são o predomínio da língua inglesa e a ascendência de políticas e governos neoliberais, espalhados por todo o mundo. O avanço do capitalismo em âmbito mundial tem trazido alterações profundas para os Estados, sociedades, grupos, classes e indivíduos (todos esses são conceitos do século XIX). 
  • O Estado do Bem-Estar Social não é mais predominante, perdeu hegemonia para o neoliberalismo, assim como também enfraqueceram-se as economias nacionais. Trata-se agora, quando muito, de adaptar as economias nacionais à economia mundial. Também no Leste europeu o capitalismo irrompeu, alterando profundamente as instituições econômicas, políticas, sociais. 
Mas esse incrível movimento de homogeneização não tem sido capaz de eliminar as desigualdades sociais; ao contrário, grandes contingentes populacionais têm ficado à margem dos benefícios da globalização. As contradições, tensões e desigualdades continuaram, ou até incrementaram, sob novas formas. 
  • Assim, bairros inteiros dos países avançados estão deixando de ser Primeiro Mundo e transformando-se em áreas de Terceiro Mundo. Os incidentes ocorridos recentemente em Los Angeles são um dos exemplos. 
Vimos, portanto, que globalização não significa homogeneização e tem a ver com dominação. Pensando em termos culturais para exemplificar o que estou querendo dizer, pensemos na língua inglesa. 
  • Para falar de cultura utilizarei a distinção proposta por Renato Ortiz (1994) entre os termos global e mundial. Global é melhor usado ao nos referirmos a processos econômicos e tecnológicos e mundial para o domínio específico de cultura. 
A categoria mundo encontra-se assim articulada a duas dimensões. Ela vincula-se, primeiro, ao movimento de globalização das sociedades, mas significa também uma visão de mundo, um universo simbólico específico da civilização atual. Voltando à língua inglesa para explicitar como globalização não significa homogeneização, mas produziu diferenciação, veremos que diferenciação tem a ver com dominação. 
  • Vários autores referem-se ao inglês como uma língua franca, sugerindo com isso uma certa neutralidade em relação às trocas linguísticas. Em comparação com outros idiomas, ele seria mais flexível, conciso, pragmático, enfim, moderno. 
Sua preponderância decorreria de suas qualidades intrínsecas. Essa proposta ingênua, essencialista, nos lembra a época em que o francês era considerado, na Europa, a língua universal. Atualmente o inglês como língua franca seria o representante natural do processo de globalização. 
  • Uma alternativa a essa visão simplista, ideológica, está contida na crítica ao imperialismo linguístico. A problemática do poder torna-se explícita como dimensão externa. Imposição alheia, portanto, à autenticidade dos idiomas nacionais. Os movimentos de globalização e mundialização nos países periféricos são diversos dos países avançados. 
Edgar Morin afirma que a modernidade-mundo nos países periféricos é perversa. E mais, ela reproduz as contradições sociais. Tanto sabem disso os profissionais de marketing, que eles dividem o Brasil em duas grandes áreas: o núcleo global (70% da população) e o periférico (30%). 
  • E fazem novas divisões, referentes a estilos de vida. Com isso, concluem que 40% da população do país, que abrange as regiões metropolitanas de São Paulo, capitais do Sul e Sudeste e algumas cidades do interior, são o principal mercado de objetos de consumo. 
E é a eles que dirigem a publicidade. Para encerrar, essa discussão de que globalização tem a ver com dominação não tem a ver com homogeneização, principalmente de oportunidades, de renda, de consumo. 
  • E, lembrando que a globalização não anula as contradições sociais, mas as reelabora e até amplia ocupando novos espaços, uma conclusão preliminar se impõe: seria, hoje, a questão social uma questão mundial? 
À semelhança do que ocorreu na primeira parte do século XX, em que a interdependência planetária manifestou-se e eclodiu em duas guerras mundiais, os avanços da globalização estariam se manifestando em convulsões sociais locais, regionais ou até nacionais? 
  • Uma questão se coloca: seriam as socio-diversidades locais, regionais ou até nacionais o locus privilegiado da questão social num mundo global? Numa época em que racionalidade, fluidez, competitividade são palavras de ordem, como entender a aspiração, tantas vezes expressa nos discursos mais diversos, por uma nova ordem internacional? 
O que significa essa expressão? Se a interdependência entre nações, povos, grupos e indivíduos é característica da sociedade mundial, nem todos os parceiros que se articulam possuem peso igual no jogo das relações internacionais. Há parceiros poderosos e há parceiros associados ou dependentes. 
  • A expressão nova ordem internacional, muito em uso na discussão da questão ambiental, pode indicar, na essência, um lema ambicioso do neoliberalismo norte-americano, em especial. Expressaria o desejo e a arrogância de alguns governantes em generalizar seus interesses e ideais entre os vários parceiros, acomodar divergências e tensões internacionais, visando conduzir o planeta ao destino que lhes convém. 
Já os países do sul usam a expressão nova ordem internacional com outro sentido: eles reclamam de uma nova ordem, baseada na matriz nacional das riquezas naturais; num código de conduta das atividades das multinacionais nos países do sul; em mecanismos e procedimentos para a transferência de tecnologia; na extinção de obstáculos aduaneiros e tarifários para a entrada de produtos do sul nos mercados do norte; na correção dos efeitos da troca desigual do preço das matérias-primas, petróleo inclusive; na reforma do sistema financeiro internacional, com vistas a resolver o problema da dívida internacional, sem hipotecar as perspectivas de desenvolvimento do sul. 
  • São outros, portanto, os significados da expressão nova ordem internacional para os países do sul. Aí estão alguns desdobramentos teórico-metodológicos e, também, empíricos que a globalização nos impõe. Veremos como se articulam com a questão ambiental.

A Sociedade Global e a Questão Ambiental

A questão ambiental, também chamada por alguns de questão ecológica (embora sem o sentido de ciência da Ecologia), não é nova. Embora atualmente a questão ambiental explique um nível crescente de sensibilidade ecológica nas mais diversas sociedades, ela tem a ver, epistemologicamente, com o surgimento da ciência moderna. 
  • Ao tentar compreender as relações entre homem e natureza, os cientistas modernos dedicaram-se a descobrir as conexões empíricas entre os fenômenos naturais e, para isso, era preciso integrar os conhecimentos teóricos, com uma manipulação prática. 
Tiveram êxito nessa tarefa, o que levou Karl Popper (apud Prigogine & Stengers, 1991:3) a afirmar que a ciência racional deve sua existência ao êxito. Esse êxito é também chamado de revolução científica. A ciência moderna mudou a concepção que o homem tinha da natureza. 
  • Esta, por sua vez, também descobriu-se através do desenvolvimento da ciência. A concepção de natureza como algo morto, sem vida, era predominante até o século XVIII. Ela foi revolucionada pela ciência moderna, que buscou formular leis universais, simples e imutáveis que dessem conta de explicar os fenômenos naturais. 
O êxito dessa empreitada acarretou, por outro lado, a negação da complexidade da natureza. A ciência, hoje, não é mais clássica. As ciências da natureza, atualmente, têm por objeto um universo fragmentado e pleno de diversidades, em que o diálogo racional busca arduamente explorar uma natureza cada vez mais complexa e múltipla. 
  • Essa busca, chamada de metamorfose da ciência por Prigogine & Stengers (1991:5), estuda não só o que permanece na natureza, mas também o que se transforma. O conceito de natureza mudou, passando a incluir, também, os seres humanos que são, em essência, seres sociais. 
A ciência moderna, que surgiu no contexto do desenvolvimento capitalista e das conquistas burguesas, viu ruir um de seus mais caros pressupostos: aquele que considerava ser possível estudar a natureza num simples microscópio e explicá-la com leis matemáticas. Mais que isso: os cientistas perceberam o papel ideológico que a ciência tem desempenhado e a necessidade de se ultrapassarem as aparências dos fenômenos. 
  • Descobriram, também, que os mesmos problemas que desafiam a cultura de uma sociedade, grupo, povo, etnia, influem no desenvolvimento das teorias científicas. Portanto, pode-se falar hoje numa nova proposta de aliança entre natureza e cultura. 
A ciência, que tem por objeto o estudo da natureza, observa, conclui, inventa e modifica-se no interior dos movimentos culturais das sociedades, grupos, etnias, classes, povos. E nesse processo, que é dialético, a natureza encontra o homem. Erwin Schrodinger (1957:109), filósofo da ciência, assim expressou esse movimento: 
Existe uma tendência para esquecer que o conjunto da ciência está ligado à cultura humana em geral e que as descobertas científicas, mesmo aquelas que num dado momento parecem as mais avançadas, esotéricas e difíceis de compreender, são despidas de significado fora do seu contexto cultural. 
Uma ciência teórica que não seja consciente de que os conceitos que tem por pertinentes e importantes são, afinal, destinados a ser expressos em conceitos e palavras com um sentido para a comunidade culta e a se inscrever numa imagem geral do mundo, uma ciência teórica onde isso fosse esquecido e onde os iniciados continuassem a resmungar para um pequeno grupo de parceiros, ficará necessariamente divorciada do resto da humanidade cultural... estará voltada à atrofia e à ossificação.
  • Se a proposta de uma nova aliança entre natureza e cultura aparece como utopia nas mais diversas sociedades e, dentro delas, em diferentes segmentos sociais, poder-se-ia falar em unanimidade de sensibilidade ecológica? 
Seria a preocupação com o meio ambiente o elo perdido que articularia realidades tão distintas como os países do norte e aqueles do sul? E já que os problemas ambientais afetam tanto ricos como pobres (ou outra dicotomia que se quiser usar), não seria o momento de se esquecerem as diferenças e buscarmos nosso futuro comum? É preciso aprofundar a análise para responder a essas questões. 
  • Na verdade, o homem está apenas começando a se preocupar com o meio ambiente, tentando formular perguntas, não respondê-las. A história do meio ambiente, que já foi ambiente, e antes ainda era chamado de natureza, apenas começou. Soluções apressadas, simplistas como propõe o diagnóstico neomalthusiano devem ser olhadas, no mínimo, com cautela. Imaginar que diminuindo o crescimento dos povos subdesenvolvidos se eliminaria o desmatamento, a desertificação, a erosão e outros problemas ambientais, com a vantagem de reduzir também a pobreza, é uma solução ideológica e mistificadora, embora atraente. 
A queda na fecundidade mundial, com raras exceções, é um fato irreversível. Os demógrafos apontam que apenas sentiremos os reflexos dessa queda após algum tempo, em virtude do que denominam fator inercial da dinâmica demográfica. A solução neomalthusiana não leva isso em consideração e esconde os reais dilemas do problema ambiental global. Para citar apenas alguns deles, não existe nenhum caso de queda da fecundidade num grande país sem desenvolvimento e modernização (Martine, 1993:13). 
  • Tecnologias limpas exigem altos investimentos em pesquisa e recursos humanos que os países em desenvolvimento não têm condições de enfrentar. Em segundo lugar, graves problemas ambientais talvez os piores como o efeito estufa, o buraco na camada de ozônio, o esgotamento dos recursos naturais, a acumulação do lixo tóxico são provocados pelas sociedades ricas e desenvolvidas, não pelas pobres. 
Se o modelo de desenvolvimento do Primeiro Mundo, arduamente perseguido pelo Terceiro Mundo, conseguir ser atingido, com níveis de produção e consumo equivalentes, aí sim a situação ambiental se agravará, mesmo se a população parar de crescer. Atualmente, menos de um quarto da população mundial consome 80% dos bens e mercadorias produzidos pelo homem (Martine, 1993:25). 
  • A tragédia do desenvolvimento explica a agonia planetária (conceito criado por Morin & Kern, 1993:73). Ou, como já foi colocado há tempo, o desenvolvimento necessita criar o subdesenvolvimento. 
É seu componente antitético. Portanto, encontramos degradação e poluição ambientais produzidas tanto pela expansão da pobreza quanto pelo acúmulo da riqueza. Reduzir a complexa questão ambiental global a problemas populacionais é, já foi dito, mistificar o real. População e meio ambiente não são construções empíricas em si, são construções sociais. 
  • A questão ambiental na sociedade global é política, econômica, social, cultural, tecnológica, demográfica, científica. Retomando a pergunta inicial que fizemos, do porquê do atual incremento da sensibilidade ecológica, vimos que não é possível esquecer as diferenças entre as sociedades, embora as dicotomias não dão conta de explicar a complexidade das sociedades contemporâneas num mundo globalizado. 
Quem sabe a preocupação com o meio ambiente e o desejo de reencontro com a natureza (interna e externa do homem) responderia à necessidade de identidade da fragmentada sociedade ocidental contemporânea? São tantas as sociedades ocidentais que as críticas a elas também assumiram variadas formas. 
  • Tão variadas que se poderia falar em sincretismo ecológico. Envolvem concepções de vida e mundo, formação de uma consciência planetária, passando por manifestações culturais chamadas de nova era até o uso da onda ecológica como instrumento mercadológico e publicitário. A questão ambiental parece debater-se entre o pragmatismo, a política e o mercado. Como falar em identidade? 
Ou em cimento social lembrando Durkheim de uma sociedade de mercado, fragmentada, competitiva, individualista? A partir das características, traços, contradições, desafios da globalização procurou-se neste texto refletir sobre alguns componentes, nuanças, dilemas da questão ambiental. Foram feitas algumas perguntas, mas é preciso formular outras, descobrir os nexos explicativos, as estruturas, relações e processos da questão ambiental. 
  • Assim, a vitalidade atual da sensibilidade ecológica responderia ao desejo de se construírem relações novas entre a pessoa e o planeta, e mais, novas relações entre os seres humanos? Não é possível também imaginar o meio ambiente como um novo paradigma da consciência e da cultura universais, em contraposição à decantada crise moral e política planetárias? 
O recurso à natureza não poderia ser entendido como uma substituição à antiga moral prescritiva e aos projetos políticos globais? Mas também o ressurgimento do mito do enraizamento, da ligação com a terra, a nostalgia camponesa, sacralização da natureza, a valorização da tradição e de um modo de viver puro não poderiam ser confundidos com antigos nacionalismos autoritários e racistas? 
  • Penso que a questão ambiental num mundo globalizado é tão grave, desconhecida e complexa que não temos respostas ainda. Ou seja, as respostas existentes são insuficientes. Precisamos construir novas explicações ou paradigmas, ou conceitos, mas sem parcializar o real. Sem simplificá-lo, esquecendo as profundas disparidades de uma época que tornou global as questões social, econômica, política, científica, tecnológica, demográfica, local, regional e nacional
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A Sociedade Global e a Questão Ambiental