sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

O que é um intelectual ?

Ciência, Ética e Sustentabilidade
Desafios ao novo século

Arminda Eugenia Marques Campos
Roberto S. Bartholo Jr.
Edições UNESCO Brasil
Um lago evapora e, pouco a pouco, vai se esgotando. Mas quando dois lagos estão unidos, eles não secam tão facilmente, pois um alimenta o outro. O mesmo ocorre no campo do conhecimento. O saber deve ser uma força revigorante e vitalizadora. Isso só é possível quando há um intercâmbio estimulante com amigos afins, em cuja companhia se possa debater e procurar aplicar as verdades da vida. I-Ching: o livro das mutações, Hexagrama 58 — Alegria, comentário à imagem
Apresentação:
  • As universidades surgidas na Europa do século XII foram, em sua organização e em seus métodos de ensino, uma criação original dos latinos medievais. 
A organização e os conteúdos de seus currículos, no entanto, foram em boa parte “importados”, por meio de traduções para o latim de conhecimentos filosóficos e científicos greco-árabes, com os temas filosóficos aportados pelas traduções influenciando a caracterização de um novo tipo de homem, que terá, nas universidades, o domicílio do exercício de seu ofício vocacional. 
  • É um evento pleno de conseqüências portadoras de um futuro. Nosso futuro. O futuro de uma civilização que fez da ciência e da tecnologia a condição de possibilidade de um novo mundo.
Os primórdios da universidade:
  • Um traço importante na genealogia de nosso “Novo Mundo” é a “linhagem” das instituições produtoras de conhecimento. Para isso, nossa atenção vai ser centrada na genealogia das nascentes universidades no contexto da Europa Medieval cristianizada. A partir do século VII, aproximadamente, as atividades de ensino na cristandade latina mantinham-se, quase que em sua totalidade, sob a alçada da Igreja, em particular vinculadas a mosteiros. 
A finalida de do ensino não era mais, como no mundo romano, manter a uniformidade cultural nos diversos pontos do império e preparar para a vida pública, mas dotar a Igreja de membros capacitados a preservar e compreender as Escrituras e textos doutrinários e a participar da administração eclesiástica.
  • Cerca de quatro séculos mais tarde, com a revitalização das cidades, as escolas monásticas começaram a perder influência em favor de escolas urbanas, ligadas a igrejas e a catedrais, em geral. Esse tipo de escola não surgiu no século XI; já existia, em alguns lugares, há bastante tempo. Nesse período, no entanto, elas aumentaram em número, tamanho e importância e passaram a ter maior continuidade. 
Esse aumento respondia à aguda consciência da necessidade de um clero secular melhor preparado, capaz de desempenhar tarefas mais complexas e com uma compreensão mais profunda do próprio cristianismo, assim como ao crescente engajamento, nos estudos, de pessoas sem interesse na carreira eclesiástica.
  • Inicialmente, os professores das escolas episcopais costumavam ser integrantes do capítulo da Igreja, mas o crescimento do número de interessados em aprender, em particular no século XII, levou à necessidade de delegar parte do ensino a pessoas externas ao capítulo. 
Esses “professores agregados” ensinavam em dependências das igrejas ou catedrais e, num momento posterior, puderam manter escolas independentes, mediante a concessão de uma licença especial, que seria chamada licentia docendi e que, a princípio, só tinha valor no território em que o outorgante havia até então tido monopólio sobre o ensino. 
  • Surgiram, assim, várias escolas sem vínculos diretos com uma igreja ou um capítulo, a partir da reunião entre professores e alunos interessados em seu ensinamento, os quais eram, freqüentemente, responsáveis pela remuneração do professor e pelo paga mento do que fosse necessário, como o aluguel do local onde ocorriam as aulas. A próxima transformação no quadro da instrução foi a reunião dos participantes no ensino em associações e a união das escolas, que resultariam, no século XIII, nas universidades.
O estabelecimento dessas associações decorria não apenas do crescimento do número de professores e alunos, mas principalmente da consciência crescente, entre eles, de que constituíam um grupo particular e partilhavam necessidades específicas. Decorria do surgimento e fortalecimento, em seu meio, de um espírito de corpo reforçado, com freqüência, por eventos que despertavam reações coletivas. 
  • Não eram as escolas ou cursos que se reuniam: continuavam consistindo na reunião de um professor e seus alunos, com sua própria forma de conduzir o ensino; continuavam, de certa forma, concorrentes; passavam a integrar uma “federação”.
Eram as pessoas que se agrupavam, de modo similar às que estabeleceram outras associações típicas do ambiente urbano da época, como as corporações de ofícios e as confrarias de mercadores. O objetivo era defender seus interesses e reivindicar o que julgavam ser suas prerrogativas, inclusive no que dizia respeito à regulamentação do ensino e ao controle de abusos praticados por alunos ou professores. Ao longo do século XIII, essas corporações e a organização do ensino foram sendo gradativamente regulamentados, dando origem a um novo tipo de instituição.
  • As “antepassadas” das universidades haviam mantido, com poucas adaptações, o modelo de educação da Antiguidade tardia romana, não apenas quanto a métodos, mas também quanto a conteúdo, ainda que inicialmente seus programas se restringissem a uma parcela reduzida do conteúdo original. Com o passar do tempo, essa parcela foi sendo aumentada, nas escolas monásticas e episcopais, com a busca e o intercâmbio de textos na própria rede de bibliotecas dos mosteiros. 
Isso levava à ampliação e ao aprofundamento das disciplinas ensinadas e a algumas tentativas, de início tímidas, de retomar a modesta cultura filosófica disponível como fonte de instrumentos de pesquisa e interpretação das Escrituras e da doutrina. Criava-se, com isso, uma expectativa e uma demanda por mais textos.
  • A partir do século XII, o material disponível ampliou-se consideravelmente. Intensificou-se a exploração e a difusão dos recursos disponíveis em latim e iniciou-se o movimento de tradução de textos, principalmente a partir do árabe, nas regiões sendo tomadas aos muçulmanos (Península Ibérica e Sicília). Grande parte dos conhecimentos filosóficos e científicos do legado grego havia sido traduzida para o árabe, estudada e desenvolvida por pensadores islâmicos.
As traduções possibilitaram, assim, o encontro não só com material produzido por autores antigos, mas também com os comentários e desdobramentos produzidos por pensadores do mundo islâmico.

A acolhida da filosofia:
  • Os conhecimentos — nos ramos da filosofia, do direito, da medicina e de várias ciências — postos em circulação elos movimentos descritos anteriormente, foram de extrema importância para os integrantes das primeiras universidades.
Coube a eles a tarefa de absorver esses conhecimentos, o que realizaram, por vezes, com avidez e em geral com satisfação. Houve não apenas uma gradativa introdução de novos elementos nos programas de estudos: as concepções de ciência e a sistematização das áreas do conhecimento oriundas do aristotelismo foram tomadas como base dos currículos elaborados pelas universidades.
  • O acolhimento e a digestão desse corpo filosófico, com destaque para o peripatetismo greco-árabe, foram realizados, em graus e perspectivas diferentes, por integrantes dos cursos de artes liberais e de teologia. 
O primeiro era um curso preparatório para os demais (teologia, medicina e direito), e seu programa, que anteriormente abrangera as artes liberais tradicionais do mundo antigo, modificou-se, ao longo do período de estabelecimento das universidades, para enfatizar o estudo da filosofia, tomada, então, como sinônimo do aristotelismo recém-descoberto. 
  • No campo da teologia, houve a elaboração das grandes sínteses teológicas que caracterizaram o século XIII, produzidas a partir da integração, da avaliação ou da rejeição de elementos da filosofia peripatética, que foi o grande impulso para sua produção.
Essas transformações não ocorreram sem divergências e conflitos, que opuseram por vezes integrantes da faculdade de artes e da faculdade de teologia ou de uns e outros com a hierarquia da Igreja. Uma das divergências mais polêmicas diria respeito à teoria aristotélica sobre a alma, o intelecto e o processo de conhecimento. A interpretação dessa teoria e de comentários a ela feitos por Averróis, associada à de parte da ética aristotélica realizada por professores da faculdade de artes, levou a concepções bastante controversas.
  • Afirmava que o intelecto seria único e separado dos indivíduos, não sendo forma substancial do corpo. Considerava, ao mesmo tempo, que o intelecto constituiria a porção fundamental e melhor do homem. A conseqüência que se podia tirar era a de que o mais nobre do ser humano não estaria ligado ao corpo, mas apenas agiria no indivíduo, sendo único para toda a espécie humana. 
Era a chamada doutrina do monopsiquismo, que negava a existência de almas imortais individuais, o que ia totalmente contra a antropologia cristã. Essa e outras teorias tidas como vinculadas em excesso, e em detrimento da verdade cristã, ao pensamento peripatético, sofreram várias censuras oficiais ao longo da segunda metade do século XIII.

Nas esquinas da cidade: 
Novos horizontes da organização da cultura nas escolas monacais:
  • As tarefas ligadas ao ensino não eram as únicas ocupações dos monges por elas responsabilizados. Não eram valorizadas por si mesmas nem definiam vocações. Algo similar acontecia com os integrantes do clero secular que ensinavam nas escolas catedrais. Para eles, também o ensino era uma tarefa entre outras. A transformação mais notável ocorreu no século XII, nas escolas urbanas que então surgiam ou se fortaleciam.
Nelas o ensino de conhecimentos profanos ganhava um espaço maior, visando qualificar não apenas o clero, mas também leigos que desempenhariam funções fora da Igreja. O próprio aumento da importância e do âmbito do ensino criava a necessidade de maior especialização e dedicação. Alguns de seus professores começaram a se caracterizar especificamente por suas atividades docentes e por sua qualificação em executá-las, e a se profissionalizar, recebendo uma remuneração específica pelo ensino que proporcionavam.
  • A tendência à especialização e à profissionalização cresceria nas universidades, corporações formadas justamente por pessoas caracterizadas por seus vínculos com o estudo, seja como professores seja como estudantes. A vida intelectual tornava-se um ofício, “pelo qual se é remunerado, e que tem suas técnicas, seu aprendizado e sua corporação” (Paul, 1973: 276). 
Nelas a maior parte dos professores, ainda que pudessem desempenhar tarefas além das docentes, definiam-se por serem professores e especialistas. 
  • Além disso, boa parte do ensino tinha como finalidade exatamente preparar para ensinar. O desempenho de atividades docentes era uma das finalidades do aprendizado — além de ser um dos meios através do qual ocorria.
O reconhecimento da condição de especialistas ficava explícito, por exemplo, quando se buscava o conjunto de doutores ou alguns entre eles, a fim de obter sua opinião — tida como fundada, como qualificada — sobre um determinado assunto. Isso acontecia em relação aos diversos cursos universitários — direito canônico ou romano, medicina, artes ou teologia. 
  • Nesse último domínio, a transformação foi mais notável, uma vez que o corpo de mestres em teologia passou a ser reconhecido na Igreja como tendo autoridade para elaborar doutrina em matéria de fé, o que deixava de ser exclusividade dos concílios. Os universitários eram reconhecidos como tendo um valor e uma função específicos para pelo menos parte da sociedade, em razão de seu conhecimento, de sua qualificação.
As escolas urbanas e suas sucessoras, as escolas universitárias, tinham uma ligação bem maior do que as monásticas com o contexto em que se encontravam e suas necessidades.
  • O número de leigos entre os alunos cresceu, principalmente nas universidades. O ensino se ampliava, proporcionando formação de profissionais que exerceriam funções fora da estrutura eclesiástica.  Mesmo a Igreja passava a ter necessidade de maior diversidade de quadros, por ter ganhado, nesse mesmo período, uma estrutura bastante centralizada e complexa, com uma burocracia mais ampla.
Do clérigo ao intelectual
  • Foi em razão dessas ligações que Le Goff apontou o surgimento da figura do intelectual, como tipo sociológico, como um dos aspectos do desenvolvimento urbano e das transformações econômicas, sociais e políticas ocorridas nas cidades florescentes dos séculos XII e XIII. 
Escolheu o termo intelectual, embora ele não fosse utilizado na época, principalmente com o sentido hoje corrente, por não encontrar entre os usados na época um que melhor conviesse para diferenciá-lo do clérigo e designar “os que fazem do pensar e do ensinar seu pensamento uma profissão”, caracterizados pela “aliança entre a reflexão pessoal e sua difusão através do ensino” (Le Goff, 1993:18). 
  • Abelardo seria a primeira grande figura de intelectual nitidamente distinta dos eruditos dos meios monásticos.
A existência do intelectual teria resultado da divisão de trabalho ocorrida nos ambientes urbanos. Seria mais um dos ofícios especializados surgidos nesse período de “redescoberta do homo faber”, em que o homem se afirmava “como um artesão que transforma e cria” (Le Goff, 1993: 54):
“É como um artesão, como um profissional comparável aos demais citadinos, que se sente o intelectual urbano do século XII. Sua função é o estudo e o ensino das artes liberais. Mas o que é uma arte? Não é uma ciência, é uma técnica. Arte é a especialidade do professor, assim como o têm as suas o carpinteiro ou o ferreiro. [...] Arte é toda atividade racional e justa do espírito, aplicada tanto à produção de instrumentos materiais como intelectuais: é uma técnica inteligente do fazer. [...] Assim o intelectual é um artesão [...]” (Le Goff, 1993: 57).
Além de artífice e produtor de conceitos, o intelectual seria ainda como um comerciante, fazendo circular idéias como aquele fazia circular mercadorias e sendo por isso remunerado.
“As cidades são centros de irradiação na circulação dos homens, tão plenas de idéias como de mercadorias, lugares de trocas, mercados e encruzilhadas do comércio intelectual” (Le Goff, 1993: 25).
Além disso, o intelectual teria consciência de suas peculiaridades e do papel a assumir: jamais, “antes da época contemporânea, esse meio foi tão bem delimitado, nem alcançou mais nítida consciência de si mesmo que na Idade Média” (Le Goff, 1993: 18). 
  • Essa consciência se daria pela identificação com os ofícios, com sua função de profissional e de citadino. 
A formação das universidades espontâneas — associações de iguais, semelhantes em muitos aspectos às corporações de ofícios ou às confrarias de mercadores — seria um sinal dessa consciência.
Jacques Le Goff (1993) vê, no entanto, o intelectual rapidamente trair a si mesmo, apesar da consciência de suas características, por não saber vencer as ambigüidades em que se encontrava, por não se comprometer o suficiente com a consciência que tinha de si mesmo. O intelectual
“[...] que conquistou seu lugar na cidade se mostra entretanto incapaz, face às alternativas que se abrem diante dele, de escolher as soluções do futuro. Dentro de uma série de crises que se poderiam denominar de crescimento, e que são os sinais da maturidade, ele não sabe optar pelo rejuvenescimento, e se instala nas estruturas sociais e nos hábitos intelectuais nos quais submergirá” (Le Goff, 1993: 60).
Urbi et orbi
  • Comprometer-se adequadamente com “as soluções do futuro” seria reforçar a identificação com os profissionais leigos burgueses (Le Goff, 1993: 64), ultrapassar as ambiguidades de sua situação, da corporação à qual pertenciam. Le Goff (1993) ressalta as contradições da corporação universitária. 
A primeira delas seria seu caráter eclesiástico: não se encontrou melhor meio de garantir a autonomia da nova associação senão reafirmando sua sujeição à jurisdição eclesiástica. 
  • “Nascidos de um movimento que tendia à laicidade, eles pertenciam à Igreja, mesmo quando procuram institucionalmente sair dela” (Le Goff, 1993: 64).
Embora as escolas tenham se desenvolvido como mais uma instituição nova surgida nas cidades, a Universidade “ultrapassou o quadro urbano onde se formou”. A corporação universitária não tinha, como as demais, “o monopólio sobre o mercado local. Sua área é a cristandade”.
  • Ela tinha um caráter universal, internacional, por atrair estudantes de várias partes e, no caso das instituições mais importantes, conceder uma licença válida em toda a parte. A defesa dos interesses de seus integrantes levava-a mesmo “a se opor — às vezes violentamente — aos citadinos, tanto no plano econômico quanto no jurídico e político” (Le Goff, 1993: 64).
Outra fonte de contradição seria as formas de subsistência dos universitários. Nem todos os professores viviam de salários, pagos por seus alunos ou pelos poderes civis. 
  • Boa parte deles, assim como dos alunos, viviam de benefícios ou prebendas, muitas vezes ligados a funções ou cargos sem nenhuma ligação com o ensino. As escolhas ocorriam em função das circunstâncias, das possibilidades existentes. Essa situação ia contra a afirmação deliberada do intelectual “como um trabalhador, como um produtor”. 
O afastamento do mundo dos demais trabalhadores, que iria minar “as bases da condição universitária” (Le Goff, 1993: 86), teria sido reforçado pela oposição entre trabalho manual e trabalho intelectual mantida pela escolástica. Além disso, a remuneração por “privilégios” acentuava o caráter eclesiástico do ensino.
  • Os intelectuais teriam, pela incapacidade de ultrapassar essas contradições, reforçado a vinculação com a Igreja e o Estado, deixando de se tornar os “intelectuais orgânicos” das classes produtoras urbanas surgidas no mesmo movimento que eles.
Ao fim dessa evolução profissional, social e institucional, havia um objetivo: o poder. Os intelectuais medievais não escapam ao esquema gramsciano, na verdade muito genérico, mas operacional. 
  • Em uma sociedade ideologicamente controlada muito de perto pela Igreja e politicamente cada vez mais enquadrada por uma dupla burocracia — a laica e a eclesiástica (...) —, os intelectuais da Idade Média são, antes de tudo, intelectuais “orgânicos”, fiéis servidores da Igreja e do Estado. As universidades se tornam cada vez mais celeiros de “altos funcionários” (Le Goff, 1993: 9)
A perfeita felicidade:
  • A perspectiva sociológica de consideração do surgimento dos intelectuais medievais, de que o livro  Os intelectuais na Idade Média, de Le Goff, é o principal marco, considera esse fenômeno no quadro do fortalecimento das escolas urbanas e da criação das universidades, em meio às transformações do meio urbano dos séculos XII e XIII. 
Vê o aparecimento dos “profissionais do pensamento” em suas relações com a instituição universitária que se estabelecia e organizava e com a sociedade em que ela se instalou.
Nossa visão sobre esse fenômeno se enriquecerá se analisarmos o nascimento do ideal intelectual, como propõe De Libera em Penser au moyen âge. Sua posição é que “os intelectuais medievais afirmaram eles mesmos sua diferença” e “representaram eles mesmos sua singularidade, é essa representação, essa consciência de si, essa ‘estima’, ou melhor, essa auto-avaliação que deve ser, no presente, estudada”.
Em suma, devemos tentar “entender a reivindicação da intelectualidade como tal” (De Libera, 1991: 11).
  • Desde essa perspectiva, o aparecimento do intelectual medieval se caracterizaria pelo ressurgimento de um ideal ético antigo, concorrente ao cristão. Isso teria ocorrido, em particular, entre os aristotélicos radicais da faculdade de artes da universidade de Paris, a partir das sétima e oitava décadas do século XIII. 
Foram eles que mais buscaram uma identidade própria, que os distinguisse dos modelos anteriores de professores, qualificando-se como filósofos. Não se quer dizer com isso que tal grupo tenha tido o monopólio da filosofia na universidade medieval. 
  • O pensamento filosófico não ficou restrito às faculdades de artes. Foi amplamente desenvolvido nas faculdades de teologia, não fazendo sentido falar em oposição razão e fé em relação aos conflitos intra-universitários do século XIII: pode-se falar, no máximo, em modalidades diferentes de exercício da razão.
Os artistas heterodoxos parisienses desejaram se distinguir atribuindo-se a si mesmos, explicitamente, uma identidade por meio da exaltação da vida filosófica, como um novo e diferenciado estilo de vida. 
“Esse movimento, que podemos denominar ‘aristocratismo intelectualista’ nasceu da familiaridade com textos filosóficos greco-árabes, ao mesmo tempo que reativava certas postulações, certos desejos que eram buscados antes dele [Siger de Brabante], em particular na época de Abelardo” (De Libera, 1991: 23).
No livro La philosophie, théorie ou manière de vivre? Les controverses de l’Antiquité à la Renaissance, Domanski destaca a tendência, entre os artistas heterodoxos parisienses, de se considerar a filosofia de maneira não apenas teórica, como instrumento conceitual, mas também como modo de vida.
  • Um componente do aspecto prático da filosofia seria a ética, concebida não apenas como ciência, mas como “ética realizada, uma ciência dos costumes não apenas teórica, mas também praticada’, encarnada por assim dizer, nos costumes do filósofo, uma arte de viver exercida por si mesma” (Domanski, 1996: 11). 
O encontro entre a filosofia e o cristianismo teria conduzido a um questionamento do aspecto prático da filosofia, da ética realizada pelos filósofos (Domanski, 1996: 23-29). 
  • A cristianização da filosofia incluiu a negação ou redução de sua vertente prática, uma vez que se considerava que o modo de viver perfeito era ditado pelo próprio cristianismo; a fonte da moral e da ética eram as verdades reveladas do Evangelho, cuja vivência integral de virtudes dependia da graça divina.
A tendência predominante, no século XII e na escolástica do século XIII, seria dar à filosofia um caráter simplesmente “teórico” e “científico”, de forma ainda mais radical que no início do cristianismo: “o adepto da filosofia não era senão um leitor e um comentador dos escritos de Aristóteles” (Domanski, 1996: 49-50). 
A tendência predominante era a de considerar que
“[...] o papel de um filósofo se limita a comentar, explicar e, eventualmente, desenvolver a verdade descoberta pela razão natural e contida nos escritos de Aristóteles. [...] Desse ponto de vista, os problemas éticos situam-se no mesmo plano que todos os demais e [...] a filosofia prática, como filosofia, logo, como pesquisa científica, não difere de modo algum de todos os outros ramos. Uma moralidade ativa, uma ética praticada, tudo isso pertence a uma outra ordem” (Domanski, 1996: 50-51).
  • Nesse quadro, a corrente dos artistas heterodoxos parisienses do século XIII seria uma das exceções ao movimento principal, por atribuir “à filosofia uma autonomia completa, sem considerá-la como simples propedêutica à doutrina cristã”, estando, portanto, “mais inclinada que as outras correntes a aproveitar esses elementos metafilosóficos do aristotelismo que se relacionavam com a vida filosófica como moral praticada” (Domanski, 1996: 70). 
Desde essa perspectiva o filósofo, vivendo conforme a natureza humana, seria o verdadeiro virtuoso, por ter condições de distinguir corretamente as virtudes dos vícios. Nele, todas as funções e ações inferiores estariam ordenadas 
“à função suprema e à ação mais elevada: isto é, a especulação sobre a verdade e sua fruição, em particular a verdade primeira” (Domanski, 1996: 72-73).
Ciência, Ética e Sustentabilidade
Desafios ao novo século

O legado peripatético árabe
  • O espírito racional de Aristóteles, suas concepções sobre o conhecimento, sobre seus diferentes domínios e métodos, foram fundamentais para o surgimento da universidade e a formulação do novo modelo de professor surgido nos meios urbanos, para a consciência das peculiaridades do homem dedicado de modo expresso à transmissão do conhecimento e para a valorização de sua ocupação.
Mas devemos considerar que o ideal do filósofo na Idade Média não teria surgido sem legado dos peripatéticos do mundo islâmico e sua leitura do aristotelismo, integradora a concepções neoplatônicas. 
  • A contribuição dos autores muçulmanos foi fundamental para a formulação do ideal de vida filosófica defendido pelos artistas parisienses da segunda metade do século XIII. Segundo A. de Libera este ideal entrelaçou dois motivos desenvolvidos por pensadores islâmicos: a idéia de um crescimento progressivo do saber e a de uma ascese intelectual.
O primeiro motivo já se encontrava presente nos textos de Al-Kindi. Inspirado em Aristóteles, mas também em princípios islâmicos sobre o conhecimento, propunha a “tese de um crescimento do saber, de um progresso, de uma construção gradual do pensamento e da sabedoria, implicando o concurso de uma multidão de homens.” O segundo, seria a “idéia ético-intelectual do destino do homem” (De Libera, 1991: 140).
A visão do universo adotada pelos filósofos árabes definia:
“[...] o ato de pensamento como um estado do universo inteligível, como um grau de unidade e de unificação da alma, que podia se intensificar à medida que se operavam a ‘continuação’, a ‘conjunção’ da alma humana com a inteligência separada que, na cosmologia peripatética, presidia os movimentos do mundo sublunar. O progresso, o crescimento do saber, tinha desde então um sentido complexo, ao mesmo tempo pessoal e transpessoal. O homem era considerado não como sujeito pensante, mas como local do pensamento, lugar do inteligível” (De Libera, 1991: 141).
Os latinos medievais teriam aprendido com Al-Kindi e Farabi que:
“[...] o pensamento podia ser um progresso cotidiano, uma assimilação progressiva, dito de outra forma, um trabalho e, em última análise, uma santificação. Os pensadores latinos aprendiam assim a considerar o exercício do pensamento como uma ascese, a ‘espiritualizar’ o ideal aristotélico da sabedoria contemplativa em uma espiritualidade do trabalho intelectual. Ao aprender dos árabes em geral a existência de uma ‘esperança filosófica’ [...], eles ascendiam à idéia de que havia lugar na terra para uma vida bem-aventurada, uma vida do pensamento, antecipando a visão beatífica prometida aos eleitos na pátria celeste.
Deviam a eles assim “a idéia de que a atividade do pensamento é também um crescimento da alma no ser, tese nova que, proporcionando ao trabalho intelectual sua dupla dimensão de labor e de contemplação, impunha uma redefinição do ideal da sabedoria” (De Libera, 1991: 140).
  • E é certo que, embora essas influências fossem adquirir um tom mais radical entre os artistas heterodoxos, estavam também presentes entre outros pensadores, como Alberto Magno.
Intelectocratas:
  • Os aristotélicos heterodoxos da faculdade de artes de Paris sofrem censuras universitárias, as de 1277 em particular, devido à sua pretensão de reviver um antigo ideal ético, próprio aos filósofos, no seio da corporação universitária.
Agora, a “filosofia não era mais considerada abstratamente, como ‘vã curiosidade’ parasitando o espírito dos clérigos, mas concretamente, como um conjunto articulado de decisões relativas ao mundo, ao lugar que nele ocupava o homem e à ética daí extraída” (De Libera, 1991: 178). 
  • E os valores que integravam esse ideal ético não se opunham, necessariamente, aos valores cristãos, mas de algum modo com eles concorriam por justificarem de modo diverso comportamentos similares. 
Havia uma espécie de assimilação de temas da moral cristã para o domínio da filosofia, dando-lhes outra justificativa, assim como a transposição de temas filosóficos para terrenos diferentes daquele em que eram tratados em sua origem. Assim, por exemplo, ao dar sentido filosófico à apologia da castidade, Siger de Brabante argumentou utilizando um tema aristotélico: o do egoísmo virtuoso. 
  • O egoísta virtuoso, sinônimo de filósofo, seria o que “se identifica com a parte mais nobre de si mesmo: o intelecto, o pensamento”, uma vez que cada “homem é seu próprio intelecto”. Apenas ele seria realmente livre e nobre, porque, ao “obedecer apenas às determinações de seu intelecto, obedece a si mesmo”.
Associada a essa concepção viria, então, a defesa de “uma nobreza do intelecto, superior à nobreza do sangue”, concepção que muito deve à idéia averroísta da elite filosófica.. Em meio aos aristotélicos heterodoxos da Universidade de Paris, afirma-se um ideal “intelectocrata”, “uma elite que deve sua dignidade não a privilégio ou condição hierárquica, mas a uma superioridade intelectual” (Lohr, 1992: 91).
  • A idéia do egoísmo virtuoso seria também acompanhada por outro aspecto da ética aristotélica: o da amizade virtuosa.
Para chegar à:
“[...] plenitude filosófica da vida individual, o homem deve ser absolutamente ele mesmo, isto é, como vimos, “viver segundo o que há de melhor nele”: o pensamento. Esse engajamento intelectual é a decisão filosófica por excelência, o ato supremo de virtude. Ora, o homem não pode viver o pensamento sem comunicação [...]. Tendo consciência de sua própria bondade, o egoísta virtuoso tem necessidade de “participar também da consciência que seu amigo tem de sua própria existência”. Necessita portanto de “viver com ele”, de ‘partilhar discussões e pensamentos’” (De Libera, 1991: 239).
Além de uma “alternativa filosófica” ao ideal cristão da castidade, apresentava-se assim também uma “alternativa” à caridade cristã.
  • “A pretensão dos filósofos contemplativos a uma dignidade de vida igual às mais elevadas virtudes da vida monástica impunha um problema corporativo aos teólogos. [...] A idéia de uma corporação de egoístas — os magistri artium — só podia causar embaraço à hierarquia eclesiástica. Era uma contradição de termos, mas uma contradição operativa, minando concretamente a universidade cristã. 
Ao eliminar a distância entre mendicantes, seculares e leigos, a reivindicação dos “filósofos” apresentava um problema novo ao cristianismo: o do intelectual em meio cristão (De Libera, 1991: 237).

A utopia universitária:
  • Um dos aspectos mais interessantes desse processo foi o de que, ao fazer da Universidade o espaço em que se poderia conduzir uma vida orientada para o ideal de atingir a contemplação intelectual, transformavam-na em utopia.
Além disso, aqueles que postulavam a exaltação da vida filosófica transpunham para o espaço da Universidade — lugar de exercício de seu ofício — algo que, para os primeiros formuladores do ideal da contemplação, da sabedoria teorética, da amizade perfeita entre filósofos, só era compatível com o domínio do ócio. 
A vida universitária se confunde com o ócio de Aristóteles, pois o estudo “é um tempo para a virtude egoísta e a amizade que ela demanda [...], considerada com os olhos de um “aristotélico”, a universidade medieval é antes de tudo um lugar e um laço de contemplação (De Libera, 1991: 240-241).
Na verdade, segundo essa concepção, a atividade do pensamento, o conhecimento, não deixava de ser um trabalho, mas um trabalho capaz de liberar, à diferença daquele que escravizaria o homem à matéria, o trabalho servil.
  • A relação entre sabedoria e conhecimento, entre contemplação e trabalho, é redefinida, e os intelectuais/filósofos são membros “de uma sociedade de homens reunidos para viver juntos uma moral, um trabalho e um ideal” (De Libera, 1997: 8).
E a junção do ideal filosófico da “felicidade intelectual” com a ética corporativista transforma essa “felicidade” em profissão. É tendo em vista essa possibilidade que fazem sentido as “interrupções de carreira”, mediante as quais alguns mestres em artes escolhem permanecer na faculdade de artes, no que seria o estágio preparatório para os demais cursos, apesar das dificuldades materiais decorrentes dessa opção. 
  • Vários desses mestres “voluntariamente se eternizaram numa situação — um ‘estado’ (status) — do qual a pobreza e a ausência de perspectivas os devia normalmente afastar” (De Libera, 1991: 12). Chegando a fazer propaganda da força dessa sedução, eles:
“souberam lhe dar um slogan que expressava o término esperado de uma carreira de professor e o fim desejado de uma ascese intelectual: ibi statur, “aí permaneçamos”. Alcançada a filosofia, deve-se manter nela; não há por que ir além do sabor (sapor) da sabedoria (sapientia)” (De Libera, 1991: 147).
Não é surpreendente que a retomada de concepções do pensamento grego não tenha contribuído para apagar a distância entre trabalho manual e trabalho intelectual. 
O surpreendente é terem, por outro lado, associado o caminho de busca da beatitude perfeita ao exercício de uma profissão; a corporação universitária ser vista como o lugar em que se poderia conduzir uma vida “definida por um privilégio realmente extraordinário: a possibilidade de abolir institucionalmente a distância que separa o otium do negotium”. 
Como uma estrutura social em que o “estudo é lazer” e “a vida pode ser inteiramente dedicada ao prazer da dificuldade” (De Libera, 1991: 242).
Os aristotélicos heterodoxos postulam uma concepção de nobreza que buscava distingui-la da nobreza tradicional. Tratava-se não de uma nobreza de sangue, mas de uma nobreza adquirida por um esforço pessoal: o “filósofo” se enobrecia por uma superioridade intelectual, em razão da escolha por viver segundo o intelecto e pela virtude a ela correspondente, pois
“a filosofia se atesta na maneira de viver e de desejar. Ainda que insistindo em falar dos rigores de sua condição, os “pobres mestres e estudantes da universidade de Paris” vivem como antigos aristocratas e cantam até os prazeres da abstinência — ou, melhor dizendo, da abstenção — egoísta. A universidade é uma instituição de pobreza onde se ganha a vida com dificuldades, mas é nesse lugar de miséria que se goza a alegria da emulação e do reconhecimento, o charme da virtude” (De Libera, 1991: 242).
Tratava-se, em essência, do ideal de uma “aristocracia intelectualista desinteressada”, deixando sua marca indelével na vida universitária. Ainda que seja evidente que esse ideal não impediu uma evolução no sentido de uma integração dos professores universitários a classes privilegiadas ou de um comprometimento do ensino com esses grupos.

Referências:

DE LIBERA, Alain. Penser au moyen âge. Paris, Ed. du Seuil, 1991.
______. Os antepassados árabes do renascimento europeu, O Correio
da Unesco, 25, 4 (abr. 1997), p. 4-9, 1997.
DOMANSKI, Juliusz. La philosophie, théorie ou manière de vivre? Les controverses de l’Antiquité à la Renaissance. Fribourg/Paris, Éditions Universitaires Fribourg Suisse/Éditions du CERF, 1996.
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. 4. ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1982. LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. 3. ed. São Paulo, Brasiliense, 1993.
LOHR, Charles. The Medieval Interpretation of Aristotle. In:
KRETZMANN, N. et al. The Cambridge History of Later Medieval Philosophy, 4. ed. Cambridge, Cambridge University Press p. 80-98, 1992.
PAUL, Jacques. Histoire Intellectuelle de l’Occident Médiéval. Paris, Armand Colin, 1973.
RASHDALL, Hastings. The Universities in the Middle Ages (ed.: F. M. Powicke e A. B. Emden). 2. ed. rev. Oxford, Oxford University Press, 3 v., 1936.

Ciência, Ética e Sustentabilidade
Desafios ao novo século