domingo, 10 de abril de 2016

Prudência e Utopismo: Ciência e Educação para a Sustentabilidade

Prudência e Utopismo: Ciência e Educação para a Sustentabilidade

Roberto S. Bartholo Jr.
Marcel Bursztyn

  • Um mundo novo Ao publicar seu Essay on the Principle of Population, no final do século XVIII Thomas Malthus lançava um alerta de que a aceleração do crescimento da população estava em descompasso com um mais lento ritmo de crescimento das oportunidades de subsistência. Essa visão pessimista foi uma marca da expectativa de futuro naquele momento. 
Mas, no século XIX, as ciências e as técnicas evoluíram de tal maneira, que permitiram superar limitações impostas pela natureza: mecanização das lavouras, correção de solos, encurtamento de distâncias com as ferrovias e a navegação a vapor. 
  • E o pessimismo malthusiano se viu desprovido de corroboração pelos fatos. Um século depois das revoluções política e produtiva do século XVIII, e já como efeito dos seus resultados positivos e negativos, uma nova onda de transformações se fez sentir, sobretudo nos países mais avançados de então. Ela incidiu principalmente sobre a generalização de políticas públicas de natureza social, com destaque para a seguridade e a educação. 
Esta última, que até então se circunscrevia a círculos restritos das elites, com profundo elo de dependência com a religião, adquire um status público e laico, tornando-se objeto de crescente universalização. Prevalecia, no meio da educação e das ciências, uma visão de mundo laical, pragmática e, sobretudo, utilitária. 
  • Coerentes com o espírito produtivista da civilização industrial e inspirados em notáveis avanços científicos e tecnológicos, que possibilitavam gigantesca e surpreendente transformação da natureza em meio de produção, cientistas e educadores passavam a desenvolver uma firme crença nas virtudes da criatividade humana. Desde então, a visão da utopia passa a ser a de um processo de construção empreendido pelo próprio engenho humano. 
Ao contrário dos valores anteriores, que possuíam profundo conteúdo sobrenatural e mítico, a civilização industrial adota uma cosmovisão antropomórfica, racional, previsível. O balanço do século XIX revela uma expectativa otimista de futuro. Uma grande crença nas possibilidades da ciência, uma confiança na ampliação das nascentes políticas sociais e nos efeitos da universalização da educação caracterizaram uma visão de futuro otimista. 
  • A utopia, na virada para o século atual, era focada sobre a prosperidade material e a possibilidade distributivista e socializante de seus frutos. 
O século XX foi testemunha da acelerada corrida produtivista, que alimenta e é alimentada por outra corrida, a do avanço das ciências e das técnicas. E o ritmo de avanço é tão forte que o mundo conhece crises de superprodução, como foi o caso da grande depressão norte-americana de 1929 a 1933. 
  • Também no mundo da ciência e da tecnologia, começa a haver uma progressiva especialização, que exige profissionais de competência cada vez mais especializada, em campos do saber cada vez mais restritos e delimitados. Esse movimento se dá de par com uma também grande especialização no campo da educação. 
Do ensino universalista, clássico e abrangente, típico do início do século atual, passamos à segmentação e especialização, preparando jovens para um mercado de trabalho compartimentado e restrito. Com isso, ganhamos em eficiência (no que se afere com indicadores mensuráveis). 
  • Mas perdemos o rumo. São cada vez mais opacos os objetivos e fins maiores de tal esforço. Perdemos a visão de conjunto. E, mais grave, o espírito crítico e a consciência da necessidade, da utilidade e, principalmente, das implicações do uso de cada saber específico, ao ser encaixado em um mosaico mais ampliado de saberes 
A tendência recente aumentou ainda mais o grau de especialização das ciências e da educação, radicalizando as conseqüências indesejáveis da perda de referência da relação entre meios e fins. Já nem sabemos muito bem aonde queremos chegar. Só sabemos que a ciência nos conduz a um mundo novo, cuja conformação previsível começa a nos inspirar preocupação. 
  • A perplexidade e indignação de Jacob Bronowski (1972 e 1978), que se reflete em várias de suas obras, é um bom exemplo disso. Membro ativo do Projeto Manhattan, que viabilizou a bomba atômica que encerrou de forma dramática a Segunda Guerra Mundial em seu front, no Japão, aquele físico confessou, mais tarde, seu “desconhecimento” quanto às implicações de seus estudos, em física atômica, em termos de utilização destrutiva. 
Foi um dos primeiros cientistas a advertir que a humanidade chegara a um ponto tal que, doravante, seria capaz de influir diretamente no futuro, como se o homem tivesse usurpado o papel de Deus.

A busca do desenvolvimento:
  • O mundo ocidental moderno tem buscado orientar racionalmente suas decisões políticas e econômicas, no sentido de promover um processo de evolução dos negócios que assegure trajetórias de pouco risco e de grande rentabilidade. No feudalismo, as mudanças eram lentas e indesejáveis. 
Ocorriam muito mais como resultado de fenômenos externos e imprevistos. Como nos informa o Dicionário Petit Robert, o uso do termo desenvolvimento associado à economia de regiões ou países passa a se dar na segunda metade do século XVIII. Somente com a industrialização, começa a haver uma preocupação com a promoção de condições para a expansão e reprodução das atividades econômicas. É o início da busca do crescimento dos sistemas econômicos, do dinamismo e do “progresso”, em escala global. 
  • Nesse processo, as estruturas de funcionamento do poder público vão se tornando cada vez mais complexas e especializadas, refletindo uma crescente responsabilidade do Estado na gestão do sistema econômico, na promoção das condições da paz social interna, na garantia das relações exteriores, na construção do futuro. 
Torna-se evidente, já no século passado, a importância de se viabilizar a promoção de políticas que fundamentem um desenvolvimento de longo prazo, minimizando a vulnerabilidade às vicissitudes de fatores restritivos indesejáveis. O século XX é marcado pela hegemonia das nações mais avançadas economicamente, no panorama mundial, num contexto de guerras e de revoluções. 
  • O fomento ao crescimento econômico se apóia em maciços investimentos em ciência e tecnologia, acoplados à construção de formidáveis sistemas de “defesa” nacional. Paralelamente, os sistemas de educação paulatinamente adaptam-se às exigências especializadas do mercado de trabalho. 
No quadro posterior à Segunda Guerra Mundial, os anos 1950 testemunham a emergência de um pensamento crítico aos efeitos negativos do crescimento econômico, em termos de justiça social e de empobrecimento relativo de alguns países e regiões. Um dos primeiros economistas a lançar este alerta foi o sueco Gunnar Myrdal (Prêmio Nobel de Economia de 1974), que chamou a atenção para o “ciclo vicioso da pobreza”, que se produzia como corolário do padrão de crescimento econômico vigente. 
  • Na América Latina, a CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina da ONU) produz interpretações e análises a partir de critérios e enfoques autóctones, diferenciando conceitualmente crescimento, como expansão quantitativa da economia, e desenvolvimento, como mudança qualitativa positiva, envolvendo distribuição de renda e avanços sociais. 
Para transformar o crescimento em desenvolvimento, seria preciso planejar, ou seja, intervir no sistema econômico, promovendo atividades estrategicamente identificadas como motrizes e, eventualmente, condicionando ou inibindo outras, tidas como provocadoras de vulnerabilidades. Foi um importante passo em dois sentidos: o da identificação do Estado como elemento de coordenação e promoção, e o da introdução do fator qualitativo de natureza social na análise econômica. 
  • Os anos 1960 e 1970 mostraram uma franca adoção do planejamento. Em todo o mundo, inclusive com apoio de organismos internacionais 1, proliferaram agências e programas governamentais voltadas à promoção do desenvolvimento econômico, em escala nacional e regional. Mas dois tipos de problemas ocorreram: uma excessiva valorização da razão econômica, com preocupação imediatista e uma negligência da dimensão sociocultural e institucional. 
O planejamento, em países com fragilidade político-institucional, derrapou em vários aspectos fundamentais, perdendo legitimidade social, credibilidade e, finalmente, saiu do eixo das decisões econômicas para se tornar essencialmente objeto de estratégias políticas (no sentido de politico e, não mais, de policy). 
  • Os planos passaram a ser adotados principalmente como instrumentos de retórica política. A idéia de construção do futuro — de Projetos Nacionais — perdeu espaço para expedientes mesquinhos e retrógrados, vinculados a interesses patrimonialistas. 
Nesse contexto, o eixo das políticas de “desenvolvimento” passou a se subordinar ao imediatismo da gestão puramente contábil das finanças públicas, como resultante last but not least das pressões advindas do engajamento no sistema financeiro internacional. 
  • Na vertente das políticas sociais, evidentemente, há um notável retrocesso, que traduz a perda de prioridade de ações estratégicas portadoras de oportunidades no futuro, como as vinculadas aos domínios da saúde e educação.
Crise dos Estados e crise do conhecimento:
  • Nenhum país do mundo conseguiu se desenvolver sem antes ter empreendido um esforço notável em matéria de educação. As nações ricas de hoje nem sempre são territórios ricos em recursos naturais, mas assumiram com determinação que a base da riqueza é uma população instruída. 
A reação das oligarquias arcaicas em relação à universalização da educação não é um fenômeno isolado. O debate na Europa, nos anos 1870, foi acalorado, com setores conservadores alertando para os riscos políticos da alfabetização dos trabalhadores paralelamente à ampliação do direito de sufrágio. 
Mas prevaleceu o princípio de que não se constrói uma nação próspera sem uma população educada (Hobsbawm: 1987).
  • Os aparelhos de Estado tiveram de se modernizar para assumir a responsabilidade dessa nova função. Foram surgindo instituições públicas que se encarregavam de regulamentar e operacionalizar a ação educacional. Esta é, ali- ás, a lógica do crescimento das estruturas estatais: ao adquirir novas responsabilidades, o Estado amplia suas dimensões, agregando para si novas funções. 
Assim, por exemplo, prover educação não foi uma novidade da Alemanha de Bismarck. A novidade foi torná-la pública e universal. Os anos 1980 selaram um consenso em escala mundial. A crise dos Estados se fazia sentir em toda parte, impondo a necessidade de se conceber novas formas de ação do poder público. 
  • Evidentemente essa “crise do Estado” assume características bem particulares em cada lugar. Assim, nos países onde as funções de promoção do bem-estar social foram minimamente atingidas (o Welfare State), a crise tem natureza fiscal e reflete uma insatisfação com a falta de perspectivas do poder público para salvaguardar tais conquistas diante da massificação do desemprego. 
No caso da América Latina, a crise assume uma grave dimensão fiscal, e manifesta a saturação da legitimidade de um Estado que resiste em mudar suas raízes patrimonialistas. A presente “crise do Estado” é também uma crise das utopias, que expressa desencanto e perda de confiança no futuro, bem como do “modo de desenvolvimento”, incidindo sobre os próprios paradigmas do desenvolvimento que, centrado na utopia econômico-consumista, produziu fantásticos desperdício, desigualdade e degradação. 
  • Muitas foram as experiências traumáticas e advertências, tanto pelo lado das ciências (como foi o caso de Bronowski), quanto pelo lado das práticas sociais (movimentos pacifistas, feministas, de defesa dos consumidores e ambientalistas), e muitas foram as catástrofes científico-tecnológicas (caso de Minamata, Seveso, Bophal e Tchernobyl). 
Ficou evidente que as expectativas utópicas estavam desfocadas. Era preciso encontrar novos rumos O novo horizonte aberto pelo princípio “sustentabilidade” vai de encontro a essa carência 2 . A lógica do desenvolvimento necessita ser subordinada aos imperativos de uma modernidade ética, não apenas uma modernidade técnica. 
  • E essa ética necessita dar resposta a novos desafios. Não se trata mais de encontrar termos relacionais equânimes para um “contrato social” firmado em condições de reciprocidade e simetria. Trata-se de enquadrar eticamente relações de poder assimétricas e, no limite, unilaterais e não recíprocas. 
Esse é notoriamente o caso da vulnerabilidade das condições futuras de vida com respeito a decisões e intervenções realizadas hoje na realidade. Outro aspecto decisivo é a necessidade de se considerar o enquadramento ético de processo irreversíveis, ou seja, quando não nos é possível corrigir amanhã os efeitos indesejáveis de cursos de ação desencadeados hoje. 
  • A idéia tradicional de um “contrato” inter pares como fundamento da ética fracassa aqui. A sustentabilidade demanda uma nova concepção: um “pacto” entre desiguais e diversos, como se pode caracterizar de modo exemplar na dimensão temporal “futurista”, ou seja, é preciso hoje assegurar a qualidade de vida das gerações futuras.
O princípio “sustentabilidade”:
  • Se a ética destina-se à ordenação e regulação do poder de agir, as ameaças engendradas pelo poder científico tecnológico crescem num “vácuo ético”, diante do qual Hans Jonas (1979) propõe o reconhecimento da vigência de um novo “princípio responsabilidade” que tenha no mandamento “que exista uma humanidade!” seu imperativo categórico. 
A idéia de direitos e deveres fundados na simetria da reciprocidade “contratual” inter pares fracassa aqui, pois a responsabilidade do dever-existir se refere, em sua dimensão temporal futura, ao ainda-não-existente. Essa é uma questão primordial para que possamos impor à modernidade contemporânea o reconhecimento de “um dever-ser objetivo e, com isso, poder-se-ia deduzir um compromisso de preservação do ser, uma responsabilidade pelo ser” (Jonas, 1979: 102). 
  • A condição de existência da responsabilidade é o poder causal do agente relativamente às conseqüências de seus atos. Essa responsabilização ainda é apenas formal. Sua dimensão propriamente ético-moral surge com a tomada de partido do sentimento pelo bem em si, inerente à coisa em seu finalismo próprio, e “como ele comove o sentir e envergonha o egoísmo do poder” (Jonas, 1979: 175). 
A proposta de Hans Jonas é fundamentar uma modernidade ética apta a restringir a capacidade humana de agir como um destruidor da auto-afirmação do ser, expressa na perenização da vida. Desde uma tal perspectiva, podemos conceber o desenvolvimento sustentável como uma proposta que tem em seu horizonte uma modernidade ética, não apenas uma modernidade técnica. 
  • Pois o princípio “sustentabilidade” implica incorporar ao horizonte da intervenção transformadora do “mundo da necessidade” o compromisso com a perenização da vida. Isso requer um acervo de conhecimentos e de habilidades de ação para a implementação de processos tecnicamente viáveis e eticamente desejáveis. 
Tal acervo constitui o conjunto das tecnologias da sustentabilidade, que podem ser caracterizadas como “saberes e habilidades de perenização da vida”, que se traduzem em ordenações sistematizadas de modos diferenciados de interação (i.e. processos de produção e circulação do produto, modos de organização social, padrões de ganho e processamento de informações etc.).
  • As tecnologias da sustentabilidade expressam sua pertença à modernidade ética por terem no princípio “sustentabilidade” sua métrica, e não serem veículos de uma pretensamente irrestrita “liberdade de escolha de cursos de ação”. As implicações para a racionalidade econômica fundada no mercado como instância diretiva são claras. 
As políticas da sustentabilidade não se fundam em considerações “intra econômicas”, mas num necessário enraizamento dos critérios econômicos em diretrizes normativas exteriores à simples “economicidade”.

O sentido da modernidade, uma excursão filosófica:
  • Pensar o princípio “sustentabilidade” como fundamento de uma modernidade ética requer um exercício prévio: explicitar nossa compreensão do sentido de modernidade. Etimologicamente, a palavra modernidade provém do advérbio latino modo, que tem o significado de recentemente, há pouco tempo. 
Segundo o dicionário Petit Robert, o adjetivo moderno já se faz presente no francês medieval desde o século XIV, enquanto o substantivo modernidade data de meados do século XIX. Conforme colocação iluminadora de Henrique Cláudio de Lima Vaz, o conceito de modernidade “aparece ligado ao próprio conceito de filosofia, de sorte a se poder afirmar uma equivalência conceitual entre modernidade e filosofia: toda modernidade é filosófica ou toda filosofia é expressão de uma modernidade que nela se reconhece como tal” (Vaz, 1992: 85). 
  • Esta tese, apresentada de modo tão sintético, demanda alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que a emergência do sentido da modernidade requer uma decisiva ruptura na representação do tempo: ela precisa esvaziar-se da estrutura mítico-simbólica da repetição e “migrar”, abandonando o porto da lógica do idêntico para fazer nova morada na dialética do idêntico e do diferente. A questão nevrálgica é a emergência da ousadia do filosofar, que se aventura a desqualificar a autoridade inerente ao antigo. 
Com o exercício da razão crítica, o discurso filosófico outorga ao tempo presente uma nova dignidade, atribuindo ao agora e ao atual uma novidade qualitativa. Somente assim a modernidade pode se instaurar como modo de leitura do tempo. 
  • Como nos aponta Henrique Cláudio de Lima Vaz, as civilizações que desconhecem a filosofia não conhecem uma leitura moderna de seu tempo, pois não incorrem na grande ousadia de julgar seu passado a partir de seu presente. Aos olhos de Aristóteles, a physis e o ethos são formas primeiras de presença do ser. 
Sendo que o ethos “rompe com a sucessão do mesmo que caracteriza a physis como domínio da necessidade, com o advento do diferente no espaço da liberdade aberto pela praxis” (Vaz, 1986: 11). O termo ethos é a transliteração de duas palavras gregas diversas: a primeira é ethos com letra inicial eta, e a segunda é ethos com letra inicial épsilon. 
  • O ethos-eta designa a morada do homem no mundo como um ser bio-cultural. Uma morada que lhe fornece abrigo e proteção e condições materiais e imateriais de sobrevivência. O reino da necessidade da physis é rompido pela instauração do ethos-eta, como um espaço de liberdade construído e incessantemente reconstruído. 
O ethos-épsilon, por sua vez, designa o comportamento humano que ocorre repetidas vezes, como um hábito culturalmente adquirido e não devido a uma necessidade da physis. Expressa-se assim uma oposição entre o que é “habitual” e o que é “natural”. Desse modo o ethos-épsilon se refere à possibilidade de uma disposição permanente do agente humano para agir de acordo com a realização do bem. Temos, em síntese, duas proposições: 
  • Ethos-eta como costume histórico-socialmente dado é princípio normativo dos atos que configuram o ethos- épsilon como hábito; e 
  • A práxis é a mediadora dos momentos constitutivos do ethos. 
Desse modo, como diz Henrique Cláudio de Lima Vaz: “a ação ética procede do ethos como do seu princípio e a ele retorna como a seu fim realizado na forma do existir virtuoso” (Vaz, 1986: 16). 
  • Esse movimento circular do ethos-eta e ethos-épsilon se realiza num processo educativo tanto individual como social. Não estando fundado pelo determinismo da necessidade, o movimento do ethos indo da universalidade do costume à singularidade da ação eticamente boa, é livre e traz em si a possibilidade do conflito. 
Os primeiros esforços construtivos da nova ciência do ethos, a ética, se focam na reflexão sobre a lei. A emergência da polis democrática impõe uma explicitação do ethos como lei. A dike (Justiça) será a fonte de legitimidade de todo nomos (lei) e, assim “o justo (dikaion) pode ser definido como predicado da ação do verdadeiro cidadão” (Vaz, 1986: 49). 
  • Em inconciliável oposição a isso estarão as manifestações da marca indelével do homem injusto: a desmesura (hybris), como ambição de poder (pleonexia), de ter (philargyria) e de aparecer (hyperephania). O justo traz, em si, o selo da medida (metron), fundamento racional da ética, edificada por Platão como a ciência da ação segundo a virtude (arete). 
A ética se edifica como crítica radical da noção de destino, entrelaçando inteligência e liberdade no vínculo virtuoso com o bem. A revolução científica moderna vincula o logos teórico ao logos técnico, de modo inconcebível para a Antiguidade clássica. 
  • Aos olhos dessa última, tal movimento equivaleria à pretensão do logos humano de reivindicar para si o lugar de Demiurgo que Platão reservava ao Artífice Divino. O logos antigo repousava sobre uma physis que se oferecia imediatamente aos sentidos, e cuja ordenação era paradigmática para a ciência do ethos. O novo logos instaura o domínio da verdade experimental, de cunho intrinsecamente lógico, por ser estruturalmente matemática. 
O que está em processo é a edificação de uma nova Natureza, intrinsecamente referida ao fazer humano, que toma o lugar da antiga physis. E a questão do universalismo ético conhece novas problematizações com a “planetarização” da cultura técnico-científica. 
  • Enquanto a ciência platô- nica se reconhece como uma ontologia do bem, a ciência moderna supõe metodologicamente a distinção entre fato e valor, e se reconhece como eticamente neutra, permanecendo em relação estritamente extrínseca com a esfera do bem. Hans Jonas (1979) afirma que a ciência moderna e a nova práxis em que ela se imbrica exigem a fundação de uma nova ética. 
Paralelamente, cresce, junto com o desenvolvimento avassalador das potencialidades da tecnociência, um niilismo ético. A tecnociência contemporânea está construindo um novo espaço. O dilema é se haverá um ethos aberto às dimensões desse novo espaço. Ou, na ausência disso, se o niilismo ético abrirá ao homem uma possibilidade de sobreviver fora da morada do ethos, lançado num espaço sem fronteiras.

Prudência e Utopismo: Ciência e Educação para a Sustentabilidade

Ética e responsabilidade:
  • Para a prática do princípio “sustentabilidade”, o conceito-chave é o de “fins”, sem o que perderiam sentido “normas” e “valores objetivos”. O “imperativo da sustentabilidade” não nos deixa esquecer que a economia está assentada sobre o fato primordial biológico de que vivemos por metabolismo e somos “criaturas de necessidade”. 
A “necessidade” é algo que a existência orgânica quer incondicionalmente, para metabolicamente continuar sendo. Suprir necessidades pertence à autoafirmação da vida. O lema “vamos comer e beber hoje, pois amanhã estaremos mortos” pode ser significativo para mortais sem futuro. 
  • Mas para mortais com futuro, que conhecem o encadeamento de na cimentos e mortes, o reconhecimento da responsabilidade pela perenização da vida, fundada no fato elementar da reprodução é tão constitutivo da economia como o é o interesse próprio, fundado no metabolismo. É assim que a responsabilidade por outros e o interesse próprio podem entrelaçar-se na atividade econômica. 
Nossa questão central não é a de uma ética futura, ou seja, uma ética a se configurar num ponto a ser ainda atingido do tempo, mas sim uma ética que hoje se preocupa com as conseqüências de nossos atos para com gerações futuras. Uma ética que não se fundamenta num contrato inter pares, pois ela se refere a relações radicalmente assimétricas: as gerações futuras são vulneráveis a nossos atos, mas a recíproca não é verdadeira. 
  • A caducidade de uma ética que se pretenda fundar no contrato inter pares abre uma situação de urgência crítica: nosso atos na era da globalização da ciência e tecnologia atingem um limiar de poderes nunca antes conhecidos. Esses novos poderes implicam uma nova responsabilidade, que por sua vez para ser exercida requer conhecimento. 
Esse conhecimento diz respeito tanto ao campo das causalidades físicas como das finalidades humanas. A ética da sustentabilidade tem uma perspectiva “futurista” e se apóia sobre uma “futurologia” (isto é, uma projeção científico-tecnologicamente informada de cenários aos quais as ações presentes podem conduzir). 
  • Nesse contexto, Hans Jonas (1992) nos coloca diante da questão nevrálgica: a futurologia dos cenários desejados é conhecida como utopia; mas a futurologia da advertência nós ainda precisamos aprender, para o autocontrole de nossos poderes desenfreados. 
E ela somente pode advertir aqueles que, além da ciência das causas e efeitos, também sustentam uma imagem do homem que lhes impõe valores mais altos e limites/freios ao irrestrito exercício de tais poderes. O dever precisa ser consentido, isto é, percebido e sentido como um valor a ser afirmado, para poder encontrar seguimento nos atos. A fundamentação de nossos atos tem natureza diversa. 
  • Ela pode ser enraizada no metabolismo vital. Assim, se “explica” a verdade da sentença: nós devemos comer, pois somos constitutivamente seres que continuam em existência devido a um processo contínuo de “relação e troca” com o meio circundante. 
Diversa é a natureza da verdade da sentença: nós devemos comer para trabalhar, a necessidade de trabalhar é condicionada situacionalmente: fatores culturais, econômicos etc. podem invalidar o vínculo que se quer aqui estabelecer. 
  • A fundamentação ontológica de uma proposição corresponde portanto ao “recurso a uma qualidade que pertence inseparavelmente ao ser da coisa” (Jonas, 1992: 129), como os processos metabólicos ao organismo. 
A questão crítica, nesse contexto, é a possibilidade de haver uma fundamentação ontológica para a ética ou, de modo mais curto e claro: será possível uma fundamentação ontológica para o conceito de responsabilidade e para o direito a exigi-la de nossos atos. Hans Jonas responde afirmativamente a essa questão dizendo que “o homem nos é o único ser conhecido que pode ter responsabilidade. 
  • Na medida em que ele a pode ter, ele a tem. A capacidade de responsabilidade significa já a colocação sob seu imperativo: o próprio poder leva consigo o dever” (Jonas, 1992: 130). A capacidade de responsabilidade é uma capacidade ética, que repousa sobre “a aptidão ontológica do homem de escolher entre alternativas de ação com saber e vontade. Responsabilidade é, portanto, complementar à liberdade” (Jonas, 1992: 131). 
Posso ser responsabilizado pelas conseqüências de meus atos na medida em que afetem algum ente, que se torna, então, objeto de minha responsabilidade. E isso só tem significância ética se a simples existência desse ente é em si afirmação de um valor. Um ser valorativamente indiferente (com relação ao qual posso, arbitrariamente, ter uma responsabilidade total ou nula) é insignificante como objeto de minha responsabilidade.
  • A primeira coisa que a apreensão de um ser não indiferente valorativamente requer de mim é que ele me importe em seu direito a afirmar o bem de existir. E em termos concretos isso pressupõe (I) a vulnerabilidade do existir do ser e (II) a possibilidade dela ser atingida por meu poder de agir (quer isso venha ocorrer por acaso ou por minha escolha deliberada). 
A dimensão de nosso poder determina o quanto podemos afetar a realidade. E com o crescimento do poder cresce a responsabilidade. Como situa Hans Jonas, “a ampliação do poder é também a ampliação de seus efeitos no futuro” (Jonas, 1992: 133). 
  • Em conseqüência disso, a responsabilidade que temos somente poderá ser efetivamente exercida se formos prudentes, apoiando nossos atos em estudos criteriosos dos impactos de nossos cursos de ação, formulando modelos capazes de aumentar nossa capacidade preditiva com recurso a simulações prospectivas. 
É imperativo que consigamos “1. maximizar o conhecimento das conseqüências de nossos atos, com vistas a como eles podem determinar e ameaçar a sorte futura do homem, e 2. à luz desse conhecimento, i.e. do inédito novo que poderia ser, elaborar um conhecimento daquilo que deve ou não deve ser, daquilo a ser permitido ou evitado: enfim, e de modo positivo: um conhecimento do bem, do que o homem deve ser, para o que certamente ajuda uma visão do que não deve ser, mas aparece, por primeira vez, como possível” (Jonas, 1992: 134). 
  • O primeiro desses saberes é um saber objetivo-científico-técnico, fundado na explicitação de vínculos causais configuradores de tendências. O segundo desses saberes é ético-valorativo. Eles são a régua e o compasso da formulação das futurologias da advertência e, como tais, ferramentas da modernidade ética da sustentabilidade. 
Um elemento de base dessa modernidade ética é, portanto, o mandamento da informação máxima sobre as conseqüências dos diversos cursos de ação. Isso implica um vasto campo de pesquisa a ser apoiado e desenvolvido, contribuindo decisivamente para confrontar o exercício dos poderes correntes com a síntese de suas razoavelmente presumíveis conseqüências futuras. 
  • Um segundo elemento de base é uma antropologia filosófica apta a nos dizer o que é o bem do homem, seu dever ser. Hans Jonas afirma ser esse saber necessário para que esse bem não seja sacrificado pelo desenvolvimento tecnológico (Jonas, 1998: 135). Essa antropologia filosófica pode se apoiar na metafísica e na história. 
Na história conhecemos o que o homem pode ser, de melhor e de pior. E esse conhecimento pode nos ajudar a aprender que não podemos pretender tentar mais que assegurar-lhe a possibilidade do bem. A metafísica pode nos ensinar o fundamento do dever-ser do homem e afirmar um veto ao suicídio da espécie, impondo à humanidade o reconhecimento do dever de uma determinada qualidade de vida, hoje ameaçada pelo cego “progredir” da modernidade técnica. 
  • No cerne da questão está o convite para tomarmos como ponto de partida da metafísica necessária a afirmativa já anteriormente apresentada de que o homem nos é o único ser conhecido que pode ter responsabilidade. Essa possibilidade é uma característica essencial do ser humano. 
Nela reconhecemos intuitivamente um valor, que não vem apenas se agregar aos valores da vida, mas que potencializa os antecedentes valores do ser. E os atuais portadores da responsabilidade reconhecem como seu dever assegurar a existência dos futuros. 
  • Mas não só isso. Reconhecem também como seu dever zelar pelas condições desse existir, desse assim ser. Pois o como se existe pode ser incompatível com o fundamento e razão do existir. Diversas antiutopias, nas linhas do Admirável mundo novo de Aldous Huxley, desenham cenários desse tipo, que o horizonte de expectativas e o espaço de experiências da modernidade técnica trazem ameaçadoramente em seu seio.
Os poderes de intervenção abertos pelas modernas ciência e tecnologia têm, nesse contexto, um caráter paradoxal, que nos evoca os versos de Hölderlin: lá onde está o perigo, ali também cresce a salvação. As modernas ciência e tecnologia são simultaneamente causa dos males e meio de evitá-los.
  • Não mais a natureza nos amedronta, mas sim nossos poderes de intervenção sobre ela. Parafraseando Descartes, vemo-nos diante do paradoxal imperativo de virmos a ser “mestres e possuidores” dos poderes humanos de intervenção.
A partir da Revolução Francesa e da Revolução Industrial, engendra-se no campo civilizatório europeu ocidental um novo contexto institucional, que vai abrir progressivamente o espaço para o reconhecimento das modernas ciências e tecnologias como potências ordenadoras da coesão social (Salomon: 1973). 
  • O processo civilizatório industrial moderno vai vinculando a administração da rés publica à capacidade de intervenção científico-tecnológica, que realiza no campo da gestão, programação, controle e previsão sua simbiose mais íntima com as estruturas de poder do Estado e do mercado. 
Este processo tem duas faces: 
  1. Um pragmatismo utilitarista identifica saber e poder, dissolvendo a diferenciação entre a explicação e o controle dos fenômenos da Natureza, reduzida a uma storehouse of matters (F. Bacon), livremente disponível para a instrumentalização humana; e 
  2. O “mito da máquina” se constitui em paradigma organizacional da sociedade (Mumford: 1967), com a idéia da “administração das coisas” servindo de base para uma ordenação “neutra” e “despolitizante” das relações hierárquicas, expressas e legitimadas sob a forma de uma “diferenciação funcional” requerida por critérios de eficiência instrumental. Ivan Illich (apud Steger, 1984: 43) aponta para a “contraprodutividade” de instituições-chave da cultura industrial moderna como indicativa do fracasso do sistema em realizar seus próprios e explícitos propósitos. 
A racionalidade instrumental autonomizada se constitui como um fim em si mesma, engendrando uma “paralisia ético-política das relações sócio-comunitárias”. A sociedade deixa de ser campo de expressão para atos criativos de pessoas aptas a uma autocondução ética de suas vidas. 
  • Dentro da tradição cultural do Ocidente, o Humanismo e o Iluminismo abrem campo para uma importante alteração do ideal do homem culto. A aquisição de cultura deixa de ser identificada com uma autoconstrução ética da existência através da religião. A ciência e a arte passam a se constituir em caminhos autônomos para a formação ética da pessoa. 
O ideal humanista-iluminista expressa uma postura diante da vida a ser constituída mediante uma atividade espiritual autônoma, capaz de realizar uma superação dialética da educação religiosa popular. Isso se expressa de modo agudo nos versos de J. W. Goethe: quem possui ciência e arte tem também religião quem ambas não possui tem religião 
  • A aquisição de cultura científica e artística é caminho de autonomia ética. E a Universidade, tal como concebida por Wilhelm von Humboldt, tem o papel de servir de instituição viabilizadora desse processo (Schelsky: 1963). O processo civilizatório industrial contemporâneo destruiu as condições de possibilidade do projeto original humboldtiano. No lugar da educação popular religiosa tradicional, surge uma nova educação “cientificizada” popular, vinculada ao positivismo industrialista moderno. 
A tecnociência se transforma em religião de um mundo artificial, que impregna, molda e formata a vida cotidiana dos indivíduos. Nesse novo contexto, o projeto humanista iluminista precisa ser atualizado, focando-se na superação dialética dessa nova religião. Hanns-Albert Steger (1978) expressa o novo imperativo mediante uma atualização dos versos de J. W. Goethe: quem possui capacidade de confrontação ética com a modernidade tem também ciência e tecnologia quem esta capacidade não possui tem ciência e tecnologia No âmago da atualização está o reconhecimento da necessidade de se superar o laissez-faire científico-tecnológico pela vigência de uma ética da responsabilidade. 
  • O próprio Max Weber (1967) reconhece que nenhuma ciência é isenta de pré-condições. E uma pré-condição básica é que seu produto seja algo valioso de ser conhecido. Valoração prévia à labor científica em sentido estrito, pois os objetos de conhecimento são sempre vinculados a contextos de interesse que não são, em si, tematizados pela pesquisa. Para Max Weber, existem sempre diversos “deuses” a serviço dos quais a prática científica pode ser desenvolvida. 
É em função de qual “deus” é seguido que se fixam as respostas sobre o que é bom de ser conhecido, determinando-se assim o conteúdo da ciência. A questão de se a contemporânea ciência em ato segue o “deus” verdadeiro ou um falso não é passível de resposta científica. Ela pode apenas ser colocada filosoficamente, e tematizada no contexto da modernidade ética. 
  • No cerne da modernidade ética do princípio da “sustentabilidade” está o reconhecimento de limites, impostos pelos primados da alteridade e da vulnerabilidade. A partir da ultrapassagem de limites de tolerância da Natureza e do tecido social, o desenvolvimento sofre uma degeneração “contraprodutiva”, fruto da falsa pretensão metafísica de se constituir num sistema fechado que se basta a si mesmo. 
Nesse quadro, o homo industrialis se vê então reduzido “à situação de um capitão, cujo navio é tão fortemente construído de aço e ferro, que a agulha de sua bússola somente aponta para a massa de ferro do navio, e não mais para o Norte” (Heisenberg, 1979: 22).

Ilustração científico-tecnológica e identidade cultural:
O mundo contemporâneo da chamada “globalização” vive uma época de grandes transformações e graves desigualdades. 
Isso fica evidenciado se considerarmos os preocupantes indicadores da situação da educação: the number of out-of-school children increased from an estimated 90 million in 1985 to 110 million in 1990, before declining to about 83 million in 1995. Each year, millions of students leave primary school, often with fragile literacy skills and no vocational training of any kind. The school experience of many children in the developing world is relatively brief and unsatisfactory. Among the most consistent relationships in demography is the inverse relationship between education of women and fertility. Only 66 per cent of primary school-age girls and 72 per cent of boys pursue their studies as far as grade 5. Indeed, many students drop out between the first and second grade, having acquired not even the most basic elements of an education. High rates of repetition also slow the progress of learning and increase the cost of education in developing countries. By one estimate, 16 per cent of education budgets in developing countries is consumed by the cost of repetition in the first four grades of primary school alone (Unesco: 1999). 
Uma das características fundamentais de um Estado futuro fundado na sustentabilidade é que a população de cada país tenha uma identidade culturalmente enraizada e cientificamente “ilustrada”. Isso coloca a necessidade de ações estratégicas no âmbito da educação e da cultura. 
  • No campo educacional, o objetivo mínimo é a erradicação do analfabetismo em todo o mundo, como requisito do objetivo maior de se capacitar a população a ter acesso à informação. No campo cultural, o objetivo é o enraizamento, na população, da herança de sua própria história, de modo a oferecer-lhe a possibilidade de afirmar sua identidade em meio a um mundo em acelerado processo de mudança. 
No novo século XXI, o conceito de alfabetização deverá ampliar-se, incorporando características que vão além da habilidade de ler e escrever. O “alfabetizado”, daqui para frente, deverá também estar apto a ter acesso a toda a ampla gama de mecanismos de informação e habilidades técnicas que o permita participar da vida cotidiana da sociedade e ter acesso ao cada vez mais restrito e seletivo mercado de trabalho. 
  • Isso implica, em primeira instância, saber manejar e se valer dos recursos da informática. Um grande desafio para as políticas públicas de universalização da educação deste novo conceito de alfabetização é a difícil compatibilização dos aspectos de natureza globalizante — que permitam situar o contexto da vida local de comunidades ainda pouco integradas ao mundo globalizado — com os imperativos de se assegurar a integridade das identidades e idiossincrasias culturais locais.
As tecnologias da sustentabilidade:
  • A conscientização da população para a importância estratégica da sustentabilidade é questão que permeia todas as áreas da Agenda 21. O eixo da argumentação que se segue está fundamentado no conteúdo expresso pela Agenda 21, reconhecida como uma das mais importantes pautas de alertas e prioridades de ação para o próximo século. 
É imperativo que se busque uma reorientação do ensino no sentido do desenvolvimento sustentável, uma promoção do treinamento para as “tecnologias da sustentabilidade” e uma elevação da consciência pública cidadã. 
  • Os projetos pedagógicos difusores do princípio “sustentabilidade” devem necessariamente incorporar uma dimensão ética, vinculante de saberes, valores, atitudes, técnicas e comportamentos que favoreçam a participação pública efetiva nas tomadas de decisão. 
É importante enfatizar o princípio da delegação de poderes, responsabilidades e recursos em nível mais apropriado e dar preferência para a responsabilidade e controle locais sobre as atividades de conscientização. 
  • Os países e as organizações regionais e internacionais devem desenvolver suas próprias prioridades e prazos para implementação, em conformidade com suas necessidades, políticas e programas, estabelecendo os meios de utilização das modernas tecnologias de comunicação para chegar eficazmente ao público, promovendo o emprego de métodos interativos de multimídia e integrando métodos avançados com os meios de comunicação populares. 
As diversas associações profissionais nacionais devem ser incentivadas a desenvolver e revisar seus códigos de ética e conduta, para fortalecer as conexões e o compromisso com a sustentabilidade, permitindo a incorporação de conhecimentos e informações sobre a implementação do desenvolvimento sustentável em todas as etapas da tomada de decisões e formulação de políticas, fazendo de cada pessoa usuário e provedor de informação (incluindo dados e sistematizações de experiências). 
  • A necessidade de informação surge em todos os níveis — internacional, nacional, regional e local — requerendo, como um postulado de justiça e eficiência, a redução das diferenças em matéria de dados e a melhoria da disponibilidade da informação para os diferentes agentes sociais. Devem ser fortalecidos os mecanismos nacionais e internacionais de processamento e intercâmbio de informação e de assistência técnica conexa, a fim de assegurar uma disponibilidade efetiva e equitativa da informação, sujeita à salva guarda da soberania nacional e direitos de propriedade intelectual pertinentes. 
As “tecnologias da sustentabilidade” são tecnologias de processos e produtos, não se configurando como unidades isoladas, mas sistemas totais, que incluem conhecimentos técnico-científicos, procedimentos, bens e serviços e equipamentos, assim como procedimentos de organização e manejo, devendo ser compatíveis com as prioridades socioeconômicas, culturais e ambientais nacionalmente determinadas. 
  • O acesso às “tecnologias da sustentabilidade” pode ser facilitado por processos cooperativos em nível internacional e regional, que requerem uma “massa crítica” de capacitação para pesquisa e desenvolvimento, apta a incorporar o acervo de conhecimentos e habilidades das “tecnologias da sustentabilidade” de modo adaptativo e inovador à cultura nacional e local. 
Tem importância estratégica o estabelecimento de redes de colaboração de grupos de pesquisa e desenvolvimento em nível internacional, nacional e regional. As “tecnologias da sustentabilidade” têm uma forte base científica. A pesquisa científica serve de elemento de articulação e apoio no estabelecimento e realização de metas do desenvolvimento sustentável, constantemente reavaliando e promovendo padrões menos intensivos de utilização de recursos. 
  • Mas diante da ameaça de irreversibilidades indesejáveis e no contexto de sistemas complexos, não plenamente compreensíveis, a falta de conhecimentos científicos não pode ser desculpa para se postergar a adoção de medidas preventivas, e a prudência é uma das virtudes cardeais da cientificidade. A base científica não deve servir de argumento para um otimismo ingênuo, apoiado na crença ilusória de sempre ser possível corrigir amanhã eventuais falhas de hoje. 
O desenvolvimento sustentável exige assumir perspectivas de longo prazo, numa visão de futuro em que a incerteza e a surpresa se fazem presentes. A estratégia de ação deve sempre buscar assegurar uma razoável gama de opções para haver uma desejável flexibilidade de resposta. 
  • Isso requer o fortalecimento da base científica e de pesquisa, a prudente interação entre as ciências e a tomada de decisões, e a valorização de conhecimentos autóctones e locais, com os diversos países identificando em nível nacional suas necessidades e prioridades no contexto das atividades internacionais de pesquisa. 
Com os conhecimentos científicos adquiridos também servindo de apoio para a realização de avaliações prospectivas. Tem prioridade estratégica para o desenvolvimento sustentável o fortalecimento da capacitação científica nacional, incentivando as atividades de pesquisa e desenvolvimento com vistas a uma maior utilização de seus resultados nos diferentes setores produtivos. 
  • Isso requer um conjunto de ações no âmbito do ensino, treinamento e capacitação de recursos humanos, apoiadas tanto nos conhecimentos tradicionais e locais da sustentabilidade como nos avanços da modernas “tecnologias da sustentabilidade”. 
Este processo deve estar articulado com o fortalecimento da infra-estrutura científica de escolas, universidades e instituições de pesquisa, e a implantação de bancos de dados científicos e tecnológicos no plano nacional, que alimentem redes regionais de informação. 
  • Tem grande importância estratégica para o desenvolvimento sustentável a melhoria da comunicação e cooperação entre a comunidade científica e tecnológica, os tomadores de decisões políticas e o público. Decisões em consonância com o princípio “sustentabilidade” são decisões éticas, que contribuem para a manutenção e aperfeiçoamento de sistemas de sustentação da vida. 
O fortalecimento de códigos de conduta e diretrizes para a comunidade científica e tecnológica contribui decisivamente para a consciência ambiental e o desenvolvimento sustentável. Para que sejam eficazes no processo de tomada de decisões, esses princípios, códigos de conduta e diretrizes, devem, não apenas, ser produto de um acordo interior à comunidade científica e tecnológica, mas também receber o reconhecimento de toda a sociedade.

Redesenhando o utopismo:
  • Vivemos uma transição crítica (Hobsbawm: 1994). O fim do milênio se associa a uma crise de paradigmas e a uma radical transformação na base tecnológica da civilização moderna “globalizada”. Acumulam-se os estudos que se pretendem formuladores de sínteses globais, previsões, cenários, agendas e avaliações que podem servir de pontes para o redesenho da utopia. 
E, em nosso fin de siècle, surge também toda uma série de trabalhos que apresentam possíveis rupturas com tendências do tipo cul-de-sacs: Fim da história (Fukuyama: 1992), 
  • Fim do trabalho (Rifkin: 1995), Fim da ciência (Horgan: 1996). Mas as cartilhas da renovação também são muitas, a começar pela Agenda 21. E seguindo uma conduta pouco usual entre acadêmicos, J. K. Galbraith (1996) lançou recentemente a obra The Good Society: The Humane Agenda, que o insere no seleto grupo de intelectuais engajados em projetos de sociedade 3. 
Nela são pautados temas como desenvolvimento, meio ambiente e educação. Podemos observar que os marcos iniciais do redesenho dos caminhos do utopismo estão apontados. Cabe agora trilhá-los. E, para isso, algumas recomendações parecem pertinentes: 
  • As estratégias de mudança não podem ser objeto de ações imediatistas, nem seus resultados colhidos a curto prazo. 
Deve-se ter em mente que os investimentos que os países hoje desenvolvidos fizeram no âmbito da educação e do desenvolvimento científico e tecnológico têm o prazo de maturação de pelo menos uma geração. 
  • Os projetos nacionais de metamorfose da identidade cultural devem ser gradualistas. Rupturas radicais “instantâneas e totais” revelam-se carentes de sustentabilidade institucional. Sem continuidade e credibilidade nas instituições, a legitimidade e a efetividade dos processos de transformação ficam comprometidas. 
  • O princípio “sustentabilidade” como fundamento de uma modernidade ética precisa resgatar a lógica do ser, superando a moldagem que a lógica do ter ao longo do século XX imprimiu tanto à educação quanto ao desenvolvimento da pesquisa e da ciência e tecnologia.
  • As mazelas da globalização, tais como desemprego, exclusão social e anulação de culturas locais, são um desafio a ser enfrentado por uma modernidade ética, fundada no princípio “sustentabilidade”, que afirme a pluralidade e diversidade como valores positivos. 
  • A educação deve estar em sintonia com novos paradigmas. 
Não mais voltada à formação de culturas e mentalidades que levem a um futuro utilitarista, especializado e condenado aos efeitos perversos do desemprego, das guerras e da degradação ambiental.

Apelo à prudência: um caso exemplar:
  • O triunfo do industrialismo na última virada de século trouxe consigo a hegemonia de dois conjuntos de expectativas. Havia, por um lado, uma grande certeza de que um ciclo de redução das desigualdades sociais, resultado de políticas públicas de proteção social, conduziria o mundo a uma situação de maior justiça social: a sociedade afluente era o espelho do futuro de toda a humanidade. 
Esse cenário otimista tinha por suporte um notável desenvolvimento da ciência e das técnicas nas décadas precedentes, que alimentava a crença na possibilidade de que um irrestrito avanço do conhecimento e do engenho humano seriam capazes de solucionar impasses, corrigir distorções e anular “efeitos externos” indesejáveis. 
  • Os amargos fatos da vida (guerras, “limpezas étnicas”, desigualdades exacerbadas, corrida armamentista, despotismos, desastres ecológicos etc.) que acompanharam o “longo século XX” frustraram tais expectativas, e revelaram a ingenuidade desse otimismo. O caminho da humanidade seguiu a perigosa trajetória que se orienta muito mais pela busca de uma modernidade técnica do que de uma modernidade ética. 
Dentro de tal cenário, o império da lógica econômica sobre a lógica da sustentabilidade transformou nosso século em um imenso laboratório de operações de risco. Nenhum outro período da história foi tão sangrento (cf. Hobsbawm: [1994], o equivalente a 10% dos 1,9 bilhões de habitantes do planeta em 1900 morreram em guerras ao longo do século). 
  • Nunca o contraste entre abundância e penúria entre povos foi tão grande; e nem a ciência foi tão necessária para a resolução de problemas criados pelo próprio avanço das técnicas. Deparamo-nos com a desconcertante situação que já havia sido alertada por Herrera (1984): vivemos sob o risco de uma “crise da espécie”. Precisamos conviver com a possibilidade de destruir a biosfera por atos humanos, e não apenas sob a forma do holocausto nuclear exacerbado pela corrida armamentista. 
É urgente incorporar uma redefinição dos balizamentos éticos de nossos atos produtivo-destrutivos. A “cega” incorporação aos sistemas produtivos de novos avanços tecnológicos, sem a prudente avaliação de seus riscos, pode transformar o alerta de Herrera em profecia, e os cenários sombrios das antiutopias de ficção científica em ingênuas antevisões, se confrontados com a realidade dos fatos.
  • O avanço das tecnologias de manipulação genética constitui importante pano de fundo para a atual temporada de balanço do século XX e de cenários para o próximo. Como há 100 anos atrás, o progresso é anunciado como redentor. E a prudência parece ser nossa virtude mais necessária.
Referências bibliográficas:

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Prudência e Utopismo: Ciência e Educação para a Sustentabilidade